CONCERTO
O IRRITADO vai falar de altas questões, próprias de um sociólogo. Como declaração de interesses, diga-se que o dito, a falar de tais assuntos, é como um escaravelho a cantar o fado. Nesta ordem de ideias, o que segue vale o que vale, eventualmente nada.
Deve-se esta introdução a um “concerto” proporcinado à malta na arena do Campo Pequeno por uma organização “musical” que se chama Korn.
Camiões alemães rodeavam a praça, inúmeros “técnicos” de ruído enxameavam as redondezas com um ar de desprezo pelos passantes. Compreende-se, eram especialistas muito acima dos mortais que por ali andavam, ou levavam criancinhas ao parque infantil.
Parece que o tal concerto estava marcado para as oito. A partir das cinco, começou a juntar-se uma multidão de adeptos, pelos vistos ansiosos por aplaudir os “artistas”. É aqui que começa a história. Quem era tal gente? Não sei. Pareceu-me que, de alguma ignota toca, tinha saído uma humanidade desconhecida, quiçá marcianos ou modernos cavernícolas. Gente nova, digamos entre os dezasseis e os quarenta anos. Todos de preto. Eles exibiam rabos da cavalo, brincos, correntes á cinta, tichartes com caveiras ou frases ininteligíveis, cabelos rasos à esquerda e compridos à direita ou vice-versa, ar aluado, calcinha justa, estranhas barbas e bigodes. Elas andavam de colants aos quadradinhos, de preferência com buracos, calções curtíssimos, cabelos amarelos ou roxos às riscas, botifarras militares, batons pretos, olhos enegrecidos por estranhas pinturas, argolinhas no nariz, nas orelhas, nas beiças, anéis de lata pelos dedos acima. Uma ou outra talvez tivesse sido bonita, mas em geral eram gordas, baixas, e olhavam de esguelha.
A comunidade estava organizada em pequenos grupos, muita gente em pé - interminável bicha -, outros em grupinhos sentados no chão, rodeando garrafas de tinto e de cerveja, erva por todos os lados, trocas de passas, os mais modestos, julgo, fumavam tabaco em cigarros artesanais, as tascas da praça espirravam imperiais em larga quantidade. Estavam relativamante serenos, julgo que na ansiosa antecipação da barulheira “artística” que estava programada.
Dei várias voltas por ali, a apreciar a tribo. Ninguém me chateou, diga-se, por observar as criaturas como se fossem bichos no jardim zoológico. Perguntei-me quem seriam, de onde viriam, onde andavam escondidos nos dias normais. Perguntei-me se alguém nesta cidade daria emprego a gente com tal aspecto. Perguntei-me do que viveriam, se havia desgraçadas famílias lá em casa a vê-los tão degradados e a sustentar a sua mais que evidente inutilidade pessoal e social. Perguntei-me o que se passará naquelas cabeças, e que miserável futuro lhes está reservado. Seria só uma fase das suas tristes vidas, coisa que a realidade se encarregaria de ultrapassar, ou seriam para sempre um virtualmente insuportável peso pessoal e social, numa degradação insuperável?
Não sei. O que sei é que, até depois da meia noite, o bairro tremeu com o soturno ribombar dos Korn, certamente uma chusma de drogados cabeludos a regar a multidão com perdigotos “musicais”, à espera da overdose final.
A coisa já passou. Pergunto agora onde se acoitaram os adeptos, onde se esconderam, onde estarão, o que fazem para comprar mais erva, o que será deles nos intervalos dos concertos.
Como se vê, nada sei de sociologia, “ciência” que, diga-se, não faz parte das minhas simpatias, nem creio que sirva de muito para melhorar a sociedade. Mas quem sou eu nestas matérias, senão um escaravelho a cantar o fado?
17.3.17