ENTREVISTA
O IRRITADO fez deslocar a São Bento um dos seus jornalistas especializados em assuntos históricos, a fim de entrevistar o ilustre deputado Parvenso Melões.
Transcreve-se a gravação d entrevista:
- Deputado Melões, gostaríamos de lhe pedir algumas ideias sobre a História de Portugal.
- Com certeza. Com todo o gosto.
- Muito bem. Na sua opinião, como considera a figura de Dom Afonso Henriques?
- Um bandoleiro, sedento de sangue, sem respeito pela própria mãe, um tipo que, com uma mesnada de díscolos e a ajuda dos bandalhos das cruzadas, atacou indefesos muçulmanos e lhes roubou o poder.
- Mas os muçulmanos...
- Pois, tem razão, eram uma cambada de gatunos que tinham dado cabo das monarquias visigóticas. Aliás, elas não passavam de serventuárias do papado e dos seus mais obscuros interesses.
- Então o mesmo se poderá dizer dos bárbaros, dos romanos, e por aí fora.
- Sim, claro, toda essa canalha deu origem ao colonialismo, ao racismo e ao fascismo. E é a mentalidade que preside, hoje em dia, a bandos de saudosistas sanguinários.
- Tomo devida nota, engenheiro Melões. Já agora, que pensa Vossa Excelência do Mestre de Avis?
- Mestre, só se for da desordem e da xenofobia. Ele e aquele tipo a quem chamam condestável. Um incompetente. Um e outro devem ser despojados de honrarias e demolidas as estátuas que por aí têm. Caixote do lixo com eles, já!
- Mas os castelhanos invadiram o país...
- Os castelhanos eram uns tipos organizados, e esse gajo de Aviz, ou lá donde é, teve que pedir ajuda a uns bifes que andavam por aí à porrada! Está a ver? E ainda há uns fascistas que gostam de gente dessa! É intolerável.
- Compreendo, doutor Melões. Um pouco mais tarde, tivemos o principe Dom Henrique, o Navegador. Que acha dele?
- Navegador? Esse estafermo nunca pôs os pés na água. Um aldrabão. Pergunte ao Boaventura. O patego queria conquistar o Norte de África e andou a matar abxalás por todos os cantos. Outra vez a filosofia do Henriques!
- Tomo nota, arquitecto Melões. Agradeço as suas opiniões. Já agora...
- Não são opiniões! É a verdade histórica. Pergunte ao Rosas, à Catarina, ao Tavares, à secção de sociologia da Universidade de Coimbra e a outros patriotas.
- Continuando, se me permite, professor Melões, gostaria de ouvir a sua opinião sobre o padre António Vieira.
- Quem? Ah, esse gajo, pois. Um propagandista do coloniaismo, um parlapatão que se dizia protector dos índios do Brasil, um desavergonhado. Muito bem fizeram aqueles tipos da escola do Mamadu quando lhe pintaram o focinho... camartelo é o que ele precisava.
- Vejo que Vossa Excelência é partidário do apagamento de certas memórias.
- Claro. É preciso pôr os pontos nos is. Para começar, devíamos aproveitar a bazuca para limpar a casa, isto é, para financiar um grande programa de demolições.
- Por exemplo?
- Exemplos não faltam. Começaríamos pelo castelo de São Jorge e por outras vergonhosas memórias que por aí há. De outros tempos, demoliríamos o mosteiro da Batalha, os Jerónimos, as várias catedrais padrescas espalhadas pelo país, o palácio da vila em Sintra - é bom não esquecer que foi lá que o analfabeto Camões leu as suas atoardas ao reizeco Sebastião -, o palácio dos braganças em Vila Viçosa... Enfim, pediu-me alguns exemplos, aí os tem. Seria um programa verdadeiramente nacional, cheio de significado, uma homenagem à verdade, um nunca acabar de restituição da justiça, em nome da juventude e do futuro.
- Mas isso é uma razia enorme, acha que o seu partido concorda?
- Acabará por concordar, há boas influências internas e externas que apontam claramente para isso. Se você ler os jornais encontra uma catadupa de artigos que vão nesse sentido. Trata-se de uma luta que, mais cedo ou mais tarde, venceremos. É a minha missão, na vida e na política.
- Senhor comendador, a redacção do IRRITADO agradece as suas declarações, e deseja-lhe um bom e longo confinamento em pocilgas que tenham vaga.
NB. O nosso colaborador foi preso pela GNR à saída de São Bento, por ofensas aos “pais da Pátria”. Amanhã será presente ao juiz.
24.2.21