Quem quer começar?
Jean François Revel dizia que o liberalismo era o capitalismo segundo a Lei. Dizia também que la démocratie ne connaît que des individus et non pas des communautés ou des groupes.
Não há um liberalismo sem o outro, isto é, introduzir políticas liberais meramente económicas, mantendo os comportamentos individuais nas baias do dirigismo, é o mesmo que introduzir as regras do futebol num jogo de cricket.
Ao ver, pelo menos através dos comentadores de serviço - que é o que se vê, os resultados do "Compromisso Portugal", fica-se com a sensação de que, ou os homens do Compromisso nada vêm para além da coisa económica, ou os comentadores de serviço não sabem do que estão a falar.
Há tempos, estive numa sessão promovida por um estimável movimento que se intitula "Direita Liberal", ou coisa que o valha. Achei que a iniciativa tinha graça e interesse. Mas fiquei abismado, não só pela falta de preparação filosófica e teórica dos intervenientes, como pela vontade, colectivamente assumida, ou de dar ao liberalismo um conteúdo de direita, ou de dar à direita uma máscara liberal. O que, num primeiro comentário, me leva a dizer que os jóvens do tal movimento estão a prestar à esquerda o melhor dos serviços, já que é a esquerda, não mal informada mas maliciosamente desinformadora quem, todos os dias e por todos os meios, procura encostar à direita a filosofia liberal. Quando, na tal sessão, tive oportunidade de intervir, procurei explicar que a direita em Portugal - e não só - sempre foi ferocíssimamente anti-liberal. Isto causou, na sala, um sururu de surpreza e incredulidade. Talvez por isso, nunca mais fui convidado para tais sessões. O que não fará grande mal. Nem eu, ali, mudaria de ideias, nem os meus jóvens interlocutores estariam dispostos a pensar de outra maneira.
A direita, em Portugal e não só, sempre teve, na sua génese, na sua prática, no seu desenvolvimento e no seu poder, uma matriz declarada e militantemente anti-liberal. Salazar, embora ao contrário dos seus colegas italianos e alemães, não utilizasse a palavra socialismo, praticava-o, sob outras vestes, é certo, mas tendo, como ponto de partida, a mesma condenação do liberalismo, do individualismo e do sufrágio universal como fonte da legitimidade política.
Nenhuma das formações políticas do pós 25 de Abril fez, a não ser por piada, do liberalismo a sua bandeira. O CDS nasceu democrata cristão, oriundo, portanto de doutrinas mais ou menos eclesiásticas que tinham por fim acabar com os desmandos do liberalismo, conferindo à "pessoa humana" o conteúdo "social" que tanto o individualismo liberal como o colectivismo socialista lhe "roubavam". Quando, em 1985, Lucas Pires se entregou a devaneios liberais, foi de imediato contradito, desapoiado, apeado, quer por freitistas, quer por adrianistas. O PSD, após a uma fase inicial de desmando socialistóide, confessou-se social-democrata, com o conteúdo que cada um queira dar a tal expressão. O PS, após a fase marxista, ainda que de inconfessa forma, passou a social-democrata, não deixando de manter alas ma(r)ximalistas, hoje muito empenhadas em mostrar que, quem manda, são os movimentos "cívicos" e não os representantes eleitos. O PC é o PC, o BE a mesma coisa sob diversos slogans, ou roupagens, se se quiser.
Então o liberalismo é de esquerda?, perguntar-se-á com toda a pertinência. A resposta é: Não sei. Nos EUA, é. No RU, está ao centro. Pela nossa Europa fora, vai-se metendo, humildemente, pelos interstícios do sistema, ou dos sistemas que procuram alguma viabilidade económica para sobreviver. Está um pouco por toda a parte, e nada em parte nenhuma. Onde não há, de todo, morre-se de fome.
É evidente que, sob um ponto de vista económico, Portugal tem que se liberalizar, com todas as consequências, algumas más, no curto prazo, outras boas, mas não imediatamente visíveis ou "sentíveis". Disso, nem o mais socialista dos socialistas (de esquerda e de direita) tem a menor dúvida. Simplesmente, num país que, há muitos, muitos anos (pelo menos a partir de 1910) se alimenta de cartilhas, à certeza do diagnóstico não corresponde a aplicação das terapêuticas. Abrem-se torneiras, mas não se liberta o caudal. Do CDS ao PS, que não se fale nas experiências alheias. Nem pensar! Isso dos êxitos da Espanha, do boom irlandês, da riqueza da Finlândia, do "milagre" britânico, tudo não passa de experiências, talvez boas para os outros, mas que, por cá, se não aplicam. Nem a Constituição deixa, nem o "povo português" está preparado para tal. O doutor Salazar raciocinava exactamente da mesma maneira: o "povo português" não está preparado para ir a votos! Com outro guarda-roupa, a peça é a mesma. No que respeita aos partidos comunistas, a questão nem se põe, uma vez que, talvez mais sinceramente que os demais, a cartilha é o que importa: se Cuba e a Coreia do Norte são as desgraças que são, isso deve-se ao inimigo externo - leia-se aos EUA - e não à injusta ineficácia do sistema ou ao universal falhanço da doutrina.
Para além das formulações teóricas, ninguém, por outro lado, é capaz desta simples verificação: a Liberdade anda de mão dada com o capitalismo liberal. Pode haver capitalismo (não liberal, isto é, fora da rule of law) sem liberdade, mas jamais esta existiu sem aquele.
Da recusa primária do liberalismo, bem ancastrada na cabeça de cada um e até na Constitução, nasce a recusa de tudo o que possa contribuir para libertar, responsabilizando, o pobre do cidadão (a questão da segurança social é um pequeno exemplo disto). As empresas, os municípios, as organizações "cívicas" são, como toda a gente sabe, Estado-dependentes.
E cada um de nós? Cada um de nós, a quem é recusado, sob a máscara de "direitos", o mais elementar livre arbítrio? Trata-se de um problema moral, ou sociológico, se se quiser. Mas é tanto ou mais importante que o problema económico. Levará, ou levaria, se para isso houvesse vontade, gerações a resolvê-lo.
Quem quer começar?
António Borges de Carvalho