CALVINISMO TABAGISTA
O senhor Pinto de Sousa, fumador ou, nas suas palavras (acredite quem quiser), ex-fumador, ficou indignadíssimo com a medonha gentalha que se atreveu a criticá-lo por andar a fumar em locais onde, segundo o próprio, é proibido fazê-lo.
Tão legitima e indignadamente chocado ficou, que se apressou a chamar “calvinistas” aos canalhas que tiveram o topete de o acusar, sim, de o acusar, a ele, o mestre de todos nós, o mais virtuoso, sim, o virtuoso (a mentira é, de há três anos a esta parte, uma venerável virtude, característica fundamental do nosso grande timoneiro), o líder, o pai, o homem que nos dá a suprema felicidade de nos controlar os vícios, de nos dar a inenarrável felicidade de nos integrarmos nas normas das suas “autoridades”, nas regras das suas “agências”, de nos protegermos cumprindo os ditames das suas “comissões”, de podermos ficar mudos de admiração perante as suas iniciativas, de podermos preparar os nossos filhos, os nossos netos, as gerações vindouras, para, com a maior alegria e o mais justificado orgulho, vir a pagar, durante anos e anos, décadas, séculos, as colossais benesses com que se propõe brindar-nos, sim, ele, o mais lídimo fiscalizador das nossas fraquezas, dos nossos pecadilhos, sim, como é possível, como é possível haver quem pergunte se vai ser multado por fumar no avião, ele que está acima de todas as multas, de todas normas que aos miseráveis párias obrigam, por sua ordem e para bem de todos nós?
Calvinistas!, disse, com toda a justiça, o senhor Pinto de Sousa. Calvinistas!
Numa extraordinária demonstração de profunda cultura reformista, ele, o bom, o óptimo, o mais importante, não podia deixar de assim qualificar os que, na sombra, se preparam, quais algozes, para questionar a sua inquestionável autoridade. Discípulos de João Calvino, o ditador de Genebra, o assassino de criancinhas, o teocrata impiedoso, que mandou queimar vivos os seus inimigos, sim, é esse o modelo de quem se atreve a contestar o seu inquestionável direito de não se submeter às suas próprias leis, como se as leis fossem feitas para ele em vez de o ser para a canalha infecta que se acotovela nas ruas!
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Aposto que o senhor Pinto de Sousa não faz a mais leve sombra de ideia de quem seja Calvino. Alguém lhe deve ter dito que o homem era muito exigente e, vai daí, saiu-se com aquela.
Continuamos a não saber qual a multa que a ASAE lhe vai aplicar, assim como ao outro, o da economia (como é que se chama?), que Sua Excelência, qual betinho queixinhas, se apressou a acusar de também andar a fumar nos aviões.
António Borges de Carvalho