Uma geração a contas com o futuro
O senhor Chirac e o seu primeiro ministro não são aquilo a que se chama gente simpática. Um como outro têm o rei na barriga, acham-se importantíssimos, e não têm nada de novo (nem de bom) para dar ao mundo. Em política externa são iguaizinhos aos socialistas. Em questões internas, coitados, perceberam que a França está no plano inclinado de uma crise sem precedentes, e que o "estado social", tal como é, se tornará, a curto prazo, insustentável.
Dispensar um trabalhador, com ou sem justa causa, é, para as empresas francesas, de uma complexidade burocrática tal que há profissionais especializados na matéria, bem pagos, sem os serviços dos quais a coisa se tornaria quase impraticável. A segurança social padece da mesma burocratite. Uma folha de salários, prémios e descontos, é matéria de tal forma intricada que só a empresas muito grandes é viável ter especialistas para a elaborar. A generalidade das empresas entrega a terceiros tal tarefa, e não há um só pequeno comerciante ou industrial que, mesmo para um ou dois empregados, não tenha que recorrer ao outsourcing ".
O desemprego em França é muito mais grave do que noutros países desenvolvidos, não só pela quantidade crescente de desempregados, mas também, ou talvez principalmente porque, dos que têm emprego, a percentagem dos que deixariam de o ter se se racionalizasse a burocracia é enorme, ou seja, o falso emprego é uma realidade social gritante e um peso na economia que se vai tornando, em tempo de vacas magras (ou menos gordas) cada vez menos sustentável.
Muitos anos de habituação a direitos sociais que tornam a sociedade francesa refém do estado e transformam o estado num administrador de regalias, parece terem metido no sangue e no coração dos franceses a ilusão de que é possível continuar na mesma sejam quais forem as circunstâncias.
Quando vemos a juventude francesa descer à rua da forma como o fez contra o já defunto PEC, o que mais impressiona é a recusa de uma geração de encarar o futuro com sentido de responsabilidade, de ambição, de luta pela vida, de assumpção das dificuldades como incentivos a fazer mais e melhor. Uma sociedade em que, aos vinte anos, se acha que um emprego é uma coisa estática, para uma vida, em vez de um degrau para outro melhor, não está, evidentemente, a construir um futuro viável.
Os intoleráveis senhores Chirac e de Villepin já recuaram. Qualquer coisa vai mudar, não se sabe ainda o quê, mas já é certo que o objectivo de tal mudança será que tudo fique na mesma, a fim de não excitar a ira dos étudiants1. E, depois das manifestaçãoes e do recuo dos senhores, a França continuará, paulatinamente, na ilusão de que é possível continuar a viver como vive, de que a PAC é eterna, de que a sua importância global é de ferro.
António Borges de Carvalho
1Note-se que étudiant quer dizer estudante universitário. São os mais qualificados quem protesta, não os que têm menos oportunidades. Estes, os petits français, os portugueses e quejandos que mourejam para eles, continuarão a mourejar como sempre fizeram.