Vidas
Há muitos anos, conheci uma senhora que, depois de anos e anos de trabalho como criada de servir -como se chamava, à época, às funcionárias do serviço doméstico - fazia, aqui e ali, pequenos trabalhos de costura. Ajudada pela reforma dos rurais não contributivos do dr. Marcelo Caetano, ia levando uma vida relativamente digna. Era uma simpatia. Não conhecia histórias outras que as da sua vida. Costumava contá-las, repetindo-se, mas sempre com um grande sentido de humor e de humanidade. Às vezes, dizia: Ai, se eu soubesse escrever, a minha vida dava um romance!
Provavelmente, tinha razão. A sua vida, nas mãos de um escritor, talvez se transformasse numa obra de arte. Nas mãos dela, é pouco provável.
Os escritores- os propriamente ditos, não falo dos contadores de histórias - pegam na memória, lançam os dados que ela lhes dá, pegam nas suas faces visíveis, que são o visível do invisível, juntam-lhes imaginação, sentimento, poder descritivo, conhecimento das armadilhas da linguagem escrita, talento, e produzem romances. Não auto-biografias, raramente memórias.
O que se passava com a senhora que conheci e que, muito legitimamente mas sem conhecimento de causa, dava à sua vida uma importância que não tinha, passa-se hoje com pessoas que se julgaria imunes a tais ilusões. Uma senhora, professora doutora cujos talentos não me atreverei a pôr em causa, publicou um livro sobre a sua vida. Muitos dizem, e com razão, que valeu a pena por se tratar de um testemunho histórico sobre uma certa sociedade e uma certa época. Mas, muito para além disto, o livro é um produto absolutamente pessoal, isto é, não trata de vidas de romance mas de pessoas concretas, vivas, com nomes e actos - por vezes os mais pessoais e íntimos - escarrapachados de forma por demais crua, e sempre dizendo quem fazia o quê, porquê, como e quando.
Será que as mulheres não estão obrigadas aos deveres de cavalheirismo que os homens costumam atribuir-se?
Pergunto-me porque será que uma senhora professora doutora tem, em relação à sua própria vida, exactamente o mesmo tipo de sentimentos que animavam a costureira analfabeta. Mas tenho a certeza de que a costureira, se escrevesse o romance da sua vida, teria a educação sentimental suficiente para não pôr a nu a vida de terceiros.
Facto é que a coisa parece fazer escola: um advogado de Lisboa (aliás "intimamente" citado no livro da professora doutora) publica um livrinho sobre a sua vida, ou episódios dela. Dá-nos a imagem de um homem inteligente, por vezes conta episódios interessantes, mas, ao contrário da sua colega, faz alarde de um talento não cultivado, e o livro sabe muito a manta de retalhos. Além disso, a ausência de um revisor competente enche-o de erros de pontuação, alguns de ortografia, pleonasmos, etc. Uma pena.
Uma diferença fundamental distingue as duas manifestações literárias, inspiradas pelas mesmas motivações e presunções que enchiam a cabeça da costureira: O advogado fala de si mas, para além de algumas referências, sempre simpáticas, a familiares já desaparecidos - o livro é dedicado ao seu pai - não cita nomes, muito menos nomes de pessoas que ainda hoje se cruzam com ele na rua. Um cavalheiro.
Francamente, espero que a moda não pegue, nem à maneira da professora doutora, nem à do advogado.
Um grande intelectual português escrevia há tempos que gostaria de escrever um romance, mas não era capaz. Era bom que outros, intelectuais ou não, percebessem, primeiro, que a sua vida, enquanto tal, não é tão interessante como julgam, segundo, que, para estes voos literários é preciso um tipo de trabalho muito diferente daquele que estão habituados a fazer.
António Borges de Carvalho