CARTA ABERTA
Excelentíssima Senhora Dona Judite de Sousa
Venho pedir-lhe ajuda. Na minha idade, certos estados de alma podem ter consequências dramáticas, até letais. A coisa é extremamente perigosa.
Quando vejo uma das suas entrevistas, dá-me um nervoso de tal ordem que até os pelinhos de debaixo dos braços se encarquilham todos. Sinto suores frios, apodera-se de mim uma agressividade surda, tenho vontade de a matar. Pode crer que só não a matei já (o que seria grave porque me poriam na cadeia sem atender às razões que me assistem), porque a senhora é de plasma.
Às vezes penso que o melhor seria deitar o aparelho pela janela fora, em sinal de incontrolável protesto. Não o faço por que a coisa é cara, não se pode comprar todas as semanas.
A minha mulher fica aflita, coitada, cheia de razão, quando vê um fuminho azulado a sair-me dos ouvidos, sinal claro de que a senhora me pôs as meninges a arder. Aqui há tempos até ligou para o 112 em vez de chamar os bombeiros. Um drama familiar que a senhora podia, se quisesse, evitar.
É para a sua boa vontade, para a sua nobreza de alma, para os seus sentimentos e princípios cívicos que venho apelar, certo de que não deixará de compreender a minha angústia e satisfará o meu pedido de socorro. Não queira ser responsável por alguma pataleta que me dê ao reprimir as ânsias, podendo até fazer-me partir desta antes de tempo.
Não lhe será difícil, vai ver.
Para que fique ciente do que há a fazer, procurarei explicar as causas profundas do meu drama.
Os seus entrevistados, às vezes, são pessoas cujas opiniões me interessaria ouvir. A nossa tão querida RTP passa dias e dias a anunciar as suas actividades. Eu acabo por ficar à espera, não de si, confesso, mas dos seus pobres entrevistados. À hora aprazada, sento-me na sala, a poltrona é confortável, acendo um cigarrinho, beberrico uma bebidinha. Quando a função começa, vejo-me na desesperada situação de ver o "meu" entrevistado esbracejar, em sentido figurado, claro, por não lhe ser permitido exprimir seja que opinião for. Assim que começa a falar, a senhora interrompe, a fim de expender as suas próprias opiniões. Perdoar-me-á a ingratidão, mas devo dizer que as suas opiniões não me interessam nada, nadinha mesmo.
É frustrante, como compreenderá, chegar ao fim da entrevista e ficar esclarecido quanto ao que a senhora pensa e completamente a zero sobre o que opina o entrevistado, coitado, que passou uma hora a querer dizer coisas e a senhora sem deixar. Acresce que a senhora tem um pendor natural, eventualmente legítimo, para o fait divers, para a intriguinha, para a patacoada boateira, para a afirmação petulante, ou seja, para o que não interessa. A senhora deve achar-se importantíssima (quem sou eu para duvidar que o seja?) quando consegue atrapalhar as pessoas, como quem diz: querias dizer coisas, não é?, ora vai-te lixar que, aqui, quem manda sou eu!
Na Quinta-feira, o desgraçado do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa foi vítima indefesa da sua competência profissional. Aliás, a senhora resolveu tratá-lo por "senhor engenheiro" em vez de por "senhor Presidente", com certeza para fazer entender às pessoas que, na sua douta opinião, o senhor já não merece, ou já não devia, ser Presidente. Como de costume, o homem viu-se à rasca para conseguir dizer duas seguidas. Em boa verdade, julgo que nunca tal lhe foi permitido. Por mais que aos lisboetas interessasse saber o que a CML anda a fazer, a senhora não permitiu que o homem falasse a tal respeito, uma vez que adquirido considerava que a Câmara não faz nada. É a sua verdade, talvez a última verdade, e a senhora não deve achar legítimo que outras se lhe oponham.
Bem vista a entrevista, passe a rima, a senhora gastou mais de noventa por cento do tempo a falar de processos, de intrigas, de desavenças, de perseguições, de disse-que-disse, de tudo o que, com certeza, a excita, deixando meia dúzia de minutos para coisas mais interessantes, e sempre sem deixar o homem dizer o que, suponho, tinha para dizer, com algum interesse para os lisboetas.
Enfim, minha senhora, é por estas razões - o caso do Presidente da CML não é mais que um exemplo - que me arrisco a ver os meus dias encurtados, a televisão escavacada, ou a minha mulher viciada em Lexotan.
Há-de compreender o meu grito de socorro. Se quiser ter a enorme bondade de me ser agradável, humildemente lhe recomendo que veja umas entrevistas na CNN, na BBC, ou até (céus!) na TF1, a fim de enriquecer os seus conhecimentos profissionais e de dar algum sossego aos dias que me restam.
Desde já gostaria de deixar expressa a minha antecipada quão profunda gratidão pelo que, por mim, quiser fazer.
De Vossa Excelência, minha senhora
Atento, Venerador e Obrigado
António Borges de Carvalho