Francesices
No que interessa à nossa área geo-estratégica, as eleições presidenciais da V República francesa têm o péssimo hábito de mudar coisa nenhuma.
Desde de Gaule, seu fundador, a Chirac, seu (quase) coveiro, nada de substancial mudou no que à política europeia e global diz respeito. A França mantem intacta a política de sempre: proclamada solidariedade europeia e atlântica quando parece convir, um solipsismo arrogante quando assim não é. Alianças naturais “amortecidas “ por compromissos históricos ou por conveniências de momento, e iniciativas próprias, tudo para mostrar ao mundo, ou lhe atirar à cara, la grandeur de la France.
Internamente, no essencial dos hábitos republicanos, à esquerda e à direita a mesma receita: a governação, aprentemente pulverizada por mairies, départements e préfectures, é ferozmente centralizada por aristocracias ferozes e envolventes, senhoras de privilégios imensos, de origens comuns (enarques e politechniciens) e de interesses semelhantes.
A França actua, em face do exterior, como um bloco, esquerda e direita servindo mais do mesmo, mudando o que for preciso para que tudo fique na mesma.
Desde o dia em que de Gaule se pôs à cabeça da manada para receber os louros do fim da guerra, o que, em boa justiça, só em pequeníssima parte lhe caberia, que a França se assumiu como a potência que já não era.
Daí para cá, está na OTAN mas não participa na estrutura militar, está na UE desde que esta lhe sustente a gigantesca quão inviável economia agrícola, funda o eixo Paris-Moscovo sem dar satisfações a ninguém, provoca a guerra que lhe interessa (Jugoslávia) servindo-se dos aliados mas sem dar cavaco à ONU, condena de forma completamente desproporcionada os aliados por se meterem noutra guerra (Iraque), acusando-os de não disporem das “autorizações” que, no seu caso, nem sequer procurou, quer impor-se como dirigente máximo das forças internacionais no Líbano sem que o seu esforço militar corresponda à pretensão, e por aí fora.
Será preciso ser quase patologicamente optimista para pensar que as presidenciais de 2007 podem acender alguma luzinha no fundo do túnel.
Isto, se se confirmar, à esquerda, a candidatura da senhora Royal e, à direita, a do senhor Sarkozy.
O último debate confirmou que, na confrontação socialista, os candidatos do aparelho não passam de dinossauros gastos e em crise de credibilidade e carisma. A senhora Royal parece perfilar-se como a única com capacidade para trazer alguma coisa de novo. Só que o novo não é necessariamente bom. Veja-se, por exemplo, a proposta de um referendo em relação à adesão da Turquia. A senhora propõe, nada mais nada menos, que sejam os franceses a decidir sobre tal matéria. Na boa linha de todos os presidentes da V República, não há solidariedades nem interesses comuns que não dependam do aval francês. “Os franceses terão a última palavra”, afirma a ilustre senhora. Ou seja, os franceses mandarão na Europa inteira. Mais do mesmo.
À direita, o senhor Sarkozy, irrequieto mas carismático, se for o escolhido, talvez possa trazer uma lufada de ar fresco. Não porque se lhe conheçam posições de base dissonantes com a a prática da V República, mas porque, por mor do confronto de personalidades, pode vir a ser obrigado a inventá-las. E, para invenções, consta que tem jeito.
Um ou outro, terá uma tarefa dura de roer: manter a senhora Merkel nos “eixos”. Os tempos de Miterrand e Kohl já lá vão, a estratégia “oriental” do senhor Schroeder e do seu parceiro Chirac está a caminho do caixote do lixo, e a França, sem a Alemanha ao lado, ou a reboque, terá que fazer alguns realinhamentos, sob pena de se deixar isolar.
Esgotados os trunfos que, há anos, podia usar, o que se pode esperar – no sentido de ter esperança - é que a velha Gália perceba, finalmente, que o seu lugar é europeu e atlântico, não mais o de líder de coisas várias, prenhes de obsoleta petulância e pouco inteligente egoísmo estratégico.
Quem me dera ser optimista.
António Borges de Carvalho