Um doutíssimo reformado do Tribunal Constitucional veio a lume defender o “direito fundamental” dos magistrados a organizar-se em sindicatos, como todos os outros cidadãos. A argumentação do ilustre senhor é tão óbvia, tão imediata, que dá para a classificar como primária e para suscitar dúvidas sobre a qualidade dos nossos juízes, pelo menos enquanto “classe”.
Como bem refere o ex-juiz, quem queira defender o direito ao sindicalismo judicial tem à disposição centenas de documentos e de exemplos, desde a Constituição às mais diversas declarações, da ONU ao Conselho da Europa, do amigo banana ao senhor de Lapalisse. A demonstração é fácil. Tão fácil que não devia fazer parte da douta intervenção do juiz em causa.
O problema não é do de saber se os magistrados, como quaisquer outros cidadãos, têm ou não têm direito – positivo - a organizar-se em sindicatos para defender os seus interesses profissionais. O problema está resolvido. Têm.
Trata-se de saber se os magistrados são cidadãos como quaisquer outros. Não são. Os poderes que têm e que sobre os demais exercem tornam-nos diferentes e são claramente incompatíveis com reivindicações sindicais, com a luta contra o patronato, com a greve e com tantas outras demonstrações sociais e políticas que fazem parte da panóplia de objectivos dos sindicatos. A tão apregoada, e tão abusiva e extensivamente interpretada “independência” dos magistrados, só por si, demonstra à saciedade a diferença fundamental entre eles e os demais, militares incluídos. É que, em todas as profissões, as pessoas são responsáveis e devem ser responsabilizadas pelo que fazem ou deixam de fazer no exercício das suas funções. Os magistrados não. Quando investigam e, sobretudo, quando julgam, não são responsáveis nem podem ser responsabilizados pelas sentenças que proferem, as quais dependem da Lei e da forma como cada juiz a interpreta e aplica ao caso concreto. Se a decisão de uma instância modificar a da instância anterior, tal não significa que esta seja punida por ter julgado de outra forma.
É certo que, ainda há pouco, um juiz foi castigado por delito de opinião profissional. Mas isso deve-se, como toda a gente sabe, a uma criminosa intervenção legislativa do poder socialista para favorecer um dos seus, intervenção que, em total ausência de dignidade, houve magistrados que acolheram e reflectiram disciplinarmente. Trata-se de um episódio grotesco, que nada quer dizer em relação à essência da profissão dos magistrados.
Sendo diferentes dos demais, fazendo parte do poder (sem ser eleitos, o que lhes confere particulares obrigações morais, sociais e políticas), não podem, ou não devem, organizar-se como os outros. Que criem “ordens”, destinadas a velar por um código de deontologia profissional, a acreditar os profissionais, a criar esquemas de protecção social, vá que não vá. Associar-se sindicalmente, é não só não ter a noção da natureza do seu mister, como reduzir o poder de que, por mandato da sociedade, dispõem, ao simples exercício de uma profissão como outra qualquer.
É certo que o entendimento moderno da igualdade coloca o conceito entre aspas. A “igualdade” dos nossos dias é fonte das maiores iniquidades e das mais terríveis confusões. Os magistrados serão iguais às outras pessoas enquanto cidadãos, mas substancialmente diferentes enquanto profissionais da soberania.
O ilustre magistrado que é motivo próximo destas linhas defende os contributos dos sindicatos para “a denúncia dos males na administração da Justiça e da feitura da Lei”, para a cooperação “nas tarefas do legislador”, “empenhando-se na sociedade civil" e "promovendo o conhecimento”, isto revelado em várias publicações.
Dando de barato estas nobres tarefas, tal como alegadas pelo ilustre juiz (criticá-las daria para considerações bem mais longas…), não são elas nada que a uma “ordem” não pudesse fazer, mas coisas que estão a léguas do que a um sindicato compete. Os sindicatos da construção civil não se pronunciam sobre as normas de aplicação do ferro no betão. Nem os da construção naval sobre a espessura das chapas dos cascos dos navios. Se os magistrados estão organizados sindicalmente, isto é, se assumem para si a mesma natureza dos pedreiros ou dos soldadores, não têm, enquanto tal, qualquer sombra de competência para “denunciar os males na administração da Justiça” os defeitos “da feitura da Lei” ou, menos ainda, para cooperar nas “tarefas do legislador”.
As consequências lógicas - que as pessoas em geral tiram da existência destes sindicatos e de alegações como as deste senhor - são que os magistrados, afinal, são tipos como os demais e que, como tal, não merecem qualquer consideração especial.
O que equivale a dizer que, para além de todos os problemas que os magistrados enfrentam, que serão deles e são nossos, há a relevantíssima questão social de revelar que, sindicalizando-se, são os próprios magistrados a considerar-se e ao poder que detêm com dignidade muito inferior àquela com que deviam, naturalmente, impor-se à sociedade, isto é, agem em quebra da sua necessária proeminência social, do respeito a que deveriam fazer jus e do poder que a sociedade lhes confiou.
28.11.09
António Borges de Carvalho