Quorum
Muita tinta tem corrido sobre o “escândalo” da falta de quorum no Parlamento no momento das votações.
Caiu o Carmo e a Trindade. Consta até que o Senhor Presidente, que nunca foi admirador da Instituição Parlamentar e jamais a tratou com um respeito por aí além, vai aproveitar a deixa para o seu primeiro discurso oficial, na próxima terça-feira.
Todos os habituais críticos – quem o não é, nesta terra de invejosos e politicamente iletrados? - se encarniçam, felizes pela oportunidade que lhes é dada, contra a “malandragem” que repoltreia a inutilidade nas cadeiras de São Bento.
Veja-se onde chegámos:
Ontem, na SIC Notícias, uma senhora do PSD, ao que consta consorte de um conhecido banqueiro, dizia que vivemos numa democracia “formal” e que é preciso que ela se torne “material”. A sua parceira de debate, luminária do PC, aplaudiu com entusiasmo. Onde chega a ignorância de uma e a esperteza da outra!
Ontem também, o presidente do GP do PSD veio propor um sistema de vigilância do comportamento dos deputados através de uma qualquer comissão de “independentes”, ou coisa que o valha, não eleitos. Como é possível que um deputado, ao que julgo jurista (o pai dele foi meu professor de direito constitucional, mas não deve ter ensinado coisa nenhuma ao filho) produza uma enormidade deste calibre? Onde chega a tendência para a asneira!
Como é costume, a informação, quase em uníssono, tece sobre o assunto as mais irresponsáveis considerações. Dos órgãos de informação em geral não se espera outra coisa. É normal, é costume, é assim. Os produtores de opinião em Portugal, de Eça de Queiroz a Álvaro Cunhal, nunca suportaram nem compreenderam a representação inorgânica da sociedade. Não há nada a fazer. O que não se aprende em séculos – quase dois – não se aprende em definitivo.
Onde estaria a democracia portuguesa se não fosse a pressão europeia? A resposta é simples: estava morta e enterrada por muitos dos que, no dia a seguir ao enterro, começariam a nobre luta pelo seu regresso.
O problema põe-se ao contrário do que fazem os comentadores.
Os males do sistema não estão nas ausências às votações. Não estar presente em certos momentos é uma atitude política legítima. Os males do sistema não estão no facto de as pessoas gostarem de ver mais gente na sala quando a TV transmite bocados, devidamente “editados”, das sessões parlamentares. Alguma vez alguém viu, na Câmara dos Comuns, os seiscentos e cinquenta deputados britânicos?
Os males do sistema não são função dos “chorudos” ordenados dos deputados, como reza o politicamente correcto.
O que se devia, então, alterar? Do ponto de vista da lei eleitoral, a meu ver, nada. O sistema funciona, é justo, e não deve ser mexido.
Do ponto de vista do recrutamento, vários problemas há que afectam a qualidade dos nossos representantes.
O primeiro é o desprezo dos mais aptos pelo sistema parlamentar. Lembro-me, como exemplo entre todos significativo, de o Dr. Sá Carneiro ter imposto aos seus ministros que se candidatassem a São Bento, para o segundo mandato da AD. O doutor Cavaco recusou liminarmente tal hipótese. É pecha da sociedade portuguesa este distanciamento dos homens de valia e de sucesso em relação à Instituição parlamentar. Responsabilidades sociais, sim, mas poucas. Responsabilidades parlamentares, nenhumas, que isto de andar nas bocas do mundo é uma chatice e, ao contrário do que dizem os jornais, não dá dinheiro que “cheire” a quem já o ganha. Não há, na classe empresarial, e até intelectual, de sucesso, a mais pequena noção de responsabilidade pública, nem sequer a compreensão do facto de que o bom funcionamento das instituições é do interesse, não só da sociedade em geral, mas dessa classe em particular. Trata-se de uma questão estrutural. Não sei se não será preciso outra ditadura para que esta gente o compreenda.
Outro problema é o da exagerada influência local na selecção dos candidatos. Os partidos dependem muito da militância local, e cedem demais às exigências da parvónia. O mesmo com as juventudes. Os partidos precisam do barulho que os jovens fazem, e vai de lhes dar lugares no parlamento, criando uma classe política profissional sem outras qualificações que não sejam as da militância partidária. Não sou contra a existência de políticos profissionais, sou contra a sua fabricação em comícios e arraiais.
Os vencimentos dos deputados, por ridículos em relação à função, são outra pecha do sistema, uma vez que afastam os melhores, e impedem os poucos desses que, apesar de tudo, vão existindo, de se dedicar, já não digo em exclusivo, mas a cinquenta por cento que seja, à vida parlamentar.
Tudo ao contrário, pois, do que, em analfabruto coro, se tornou politicamente correcto. A Instituição parlamentar deve ser dignificada e defendida sejam quais forem as faltas de comparência dos deputados. Já agora, se o senhor Pinto de Sousa (conhecido por Sócrates) quiser fazer passar as suas propostas de lei, que tome conta da sua gente. Se o não faz, o problema é dele, e não nosso, ou do Parlamento, como se diz por aí.
António Borges de Carvalho