RESERVAS ECOBRONCAS
A propósito do cataclismo da Madeira ergueu-se um clamor de solidariedade que atravessou o “país, do Minho a Timor”, como se dizia no ominoso antigamente.
Não houve boa alma que se não manifestasse. Do Presidente ao senhor Pinto de Sousa, ou seja, do mais alto ao mais baixo, um coro das mais variegadas vozes se ergueu, clamando por auxílio de toda a ordem.
Ainda bem.
O pior é que, à mistura com estas manifestações, apareceram, sem respeito pelo drama das pessoas e da ilha, as habituais canoras gentes que, em vez de falar em auxílio, desataram a defender e atacar as capelinhas com um afã, uma ausência de sentimentos e uma virulência próprias dos mais baixos sentimentos de indiferença ou de auto-elogio.
Enquanto uns disseram que era preciso meter as divergências na gaveta e tratar do que há a tratar, que não é pouco, outros há que por aí espraiam as retorcidas meninges na busca das habituais “razões” para o que aconteceu, razões que ora servem para atacar o senhor Jardim, ora são utilizadas para defender os projectos de certos planeadores que há muito andam a fazer pregações pelo rectângulo e cuja obra, nele, está à vista de todos, com vergonhosos resultados.
De repente, se as casinhas se despenharam pelas vertentes, se a enxurrada trouxe com ela cadáveres e automóveis, se veio gente aos trambolhões pela serra abaixo, tudo, mas tudo, se deve aos erros de planeamento do senhor Jardim. A natureza, coitada, mais não fez que ter um mais que legítimo estremeção. Esquecem-se os lobos que as Ribeiras começam lá em cima, onde é reserva natural, e que, cá por baixo, onde há planeamento, mau ou bom, as consequências, apesar da destruição ocorrida, não ceifaram vidas nem demoliram casas. Isto é, onde a água e a lama tinham maior caudal, as consequências humanas e materiais foram comparativamente mais leves. Esquecem-se que os negregados túneis do Jardim não entupiram, que as malditas estradas do Jardim se aguentaram, que o criminoso betão do Jardim resistiu aceitavelmente. Onde a natureza estava menos tocada, onde, desde sempre, as pessoas construíram de forma mais ou menos clandestina, onde havia “protecções ambientais” que limitam, via reserva natural, as intervenções do betão, foi exactamente aí que as pessoas mais sofreram.
Dois terços do território da ilha são reserva natural. Dois terços são politicamente intocáveis. Ai de quem se atreva a “betonizar” ou encanar, ou gerir as linhas de água! Ai de quem se atreva a desviar o seu curso para proteger as habitações! O conceito de reserva não é, entre os bem-pensantes da Nação, o de um território a gerir de forma a conservar as espécies controlando a sua evolução, a tornar segura, ainda que limitada, a presença humana, a proteger a paisagem sem a idolatrar. O conceito dos bem-pensantes é o de deixar estar tudo como está, de caminho condenando a presença humana. Para esta gente, se há desastres é porque o homem se foi meter onde não era chamado!
O paroxismo da petulância maledicente e desumana atinge-se quando os bem-pensantes “concluem” que, se houve desastre, é porque, na Madeira, não se aplica a milagrosa reserva ecológica que tem minado as decisões continentais em matéria de urbanismo.
Há uns vinte e tal anos, houve uns senhores que, fechados nos seus gabinetes e ateliers, se dedicaram a fazer uns bonecos no mapa do país, declarando a seguir que os seus traços definiam uma “reserva ecológica” intocável e transformando a coisa em decreto. Passou-se da definição de áreas protegidas por razões concretas, científicas e excepcionais, para a consagração de colossais limitações inventadas na avenida da liberdade e aplicáveis ao país inteiro.
Os resultados são conhecidos. A reserva ecológica serve para limitar uns e proteger outros, para ser furada onde os interesses locais o justificam e para ser absolutamente incompreendida pelas pessoas, por absurda e abusiva.
Mas, no parecer dos desenhadores que a conceberam, se tivesse sido aplicada na Madeira, os aluviões não fariam mal a ninguém!
A desgraça da Madeira serviu, pela positiva, para despertar sentimentos de solidariedade e de unidade nacional. Serviu, pela positiva, para abater certas bandeiras, cuja importância, em face do acontecido, era descartável. Pela negativa, serviu para despertar alcateias esfaimadas, ou cheias de ódio a Jardim e ao seu sucesso, ou propagandistas das teorias com que vêm, de há décadas, amarrando o país ao cais do seu poderoso ego.
28.2.10
António Borges de Carvalho