HISTÓRIA ZAROLHA
Há muitos anos, ouvi contar este horror:
Um amigo do meu avô materno, malaguenho de nome Gross, esteve refugiado na nossa casa durante não sei quanto tempo – antes de eu nascer - fugido das atrocidades da guerra de Espanha. Era de uma família franquista e tinha um irmão. O pai, um dia, foi preso pelos republicanos, ou comunistas, ou esquerdistas, ou o que lhes queiram chamar. Passou fome de rabo na prisão. Até que, um dia, com a barriga a dar horas, foi presenteado com um magnífico bife. Devorou-o. Depois, os carcereiros levaram-no a outra cela, onde o seu filho mais velho jazia morto, nu, com um naco a menos numa perna.
- Vês de onde saiu o bife que comeste? – perguntaram-lhe.
O homem caiu redondo, morto também.
Conto esta tão espanhola tragédia, não para acusar seja quem for de atrocidades tais, mas para sublinhar que a guerra de Espanha foi um nunca acabar de selvajarias, praticadas por um e outro lado do conflito. Não vale a pena citar as malfeitorias do franquismo, porque essas são propagandeadas todos os dias por toda a parte. Acredito.
No regresso da Monarquia, os espanhóis adoptaram uma postura de paz civil, ou porque a memória da guerra estava ainda presente em muitos dos que a tinham vivido, ou por simples bom senso e sentido de futuro.
Aos poucos, porém, o ódio voltou a comandar muitas cabeças. Criou-se então a querela da “memória histórica”, coisa que para mais não serve que para recriar acontecimentos que há já pouco quem tenha vivido. O que, objectiva ou propositadamente, recria sentimentos, emoções e malquerenças que, hoje, já a ninguém aproveitam.
Os historiadores que façam a história, da forma isenta, distante e rigorosa, própria do espírito científico e da lhaneza intelectual.
O que se passa nada tem a ver com isenção, distância e rigor. Trata-se de puro vasculhar na consciência de cada um, à procura de um ódio que devia pertencer, em exclusivo, à tal História.
Não sei se o juiz Baltazar Garçon tem competência para mandar exumar cadáveres de revolucionários abatidos pelo franquismo. Não sei se tem competência para julgar seja quem for, isto é, para andar à caça de torcionários que o foram do lado da História de que o senhor Garçon detesta. Não sei se o que se passa é simplesmente uma consequência da ânsia de protagonismo do célebre magistrado. Não sei se os crimes da guerra de Espanha devem, ou não, ser imprescritíveis.
O que sei é que o senhor Garçon foi competente para emitir um mandato de captura internacional para o torcionário Pinochet, mas não se considerou competente para fazer o mesmo a respeito do torcionário Fidel Castro, primeiro com a desculpa de se tratar de um chefe de Estado, depois sem desculpa de espécie nenhuma.
Ressuscitar a chamada “memória histórica” é, em si, um erro clamoroso.
Ressuscitá-la como olhos tão zarolhos como os do juiz Garçon e de tantos outros, sedentos de sangue e de póstuma vingança, é, pelo menos, um crime de lesa Pátria.
Tão espanhóis eram uns como outros. Tão selvagem foi o que uns fizeram como o que fizeram os outros. Fazer disso coisa actual é de uma desonestidade sem nome.
17.4.10
António Borges de Carvalho