O MAIS CARO DOS COMENTADORES
O IRRITADO tem resistido à corrida mediática sobre as presidenciais, coisa ideal para distrair o povo dos males que o afligem e das nuvens que se acastelam no horizonte.
Talvez seja, porém, o momento de dizer qualquer coisa sobre o assunto.
O sistema “semi-presidencialista” com que a Nação foi brindada, é tudo menos tal. Trata-se de um sistema que, em boa técnica jurídico-constitucional, se deveria chamar “parlamentar limitado” ou coisa que o valha.
De facto, o Presidente, entre nós, é uma espécie de corta-fitas a quem foram dados magros poderes de fiscalização legislativa e uma bomba atómica de uso condicionado, como é próprio das bombas atómicas.
O Presidente não é o Chefe de Estado que representa a Nação (só representa a República) e que se mostra perante terceiros com o “seu governo”, no sentido do governo do país, uma vez que o governo tem outra legitimidade que não a do Presidente. Também não é o líder do poder político, porque não tem poder político, a não ser em excepcionalíssimos casos.
Assim, vivemos no absurdo de ter duas legitimidades com a mesma origem: uma que serve para nos governar, outra que ninguém sabe exactamente para que serve.
Para quem duvide desta verdade, basta olhar e ver: em todas as eleições presidenciais, antes delas, durante elas e depois delas, toda a gente discute o que são, o que não são e o que serão os poderes presidenciais.
No momento que passa, por exemplo, já se anda para aí, a começar pelos putativos candidatos, a parlapatar animadamente sobre se deve haver “cooperação estratégica” ou “cooperação institucional”, dois conceitos mais ou menos absurdos e indefiníveis; já andam os challengers do actual presidente ocupadíssimos em demonstrar a enorme importância do que se propõem fazer e não fazer, metendo os pés pelas mãos quanto à solução do insolúvel problema de saber como podem levar por diante as suas ideias, pondo-as “ao serviço da Nação”, sem ter para tal outro poder senão o de dizer umas coisas de vez em quando e de vetar uma coisita ou outra na certeza de que o veto pode ser sempre ultrapassado, de mandar umas mensagens e outras coisas do mesmo jaez.
O Presidente converte-se assim, queira ou não queira, num mero fabricante de “bocas”, vertidas em mensagens e discursos, coisas que, as mais das vezes, não servem para nada, na medida em que quem as produz não tem poder para as levar por diante. Nesta medida, o Presidente não passa de um comentador e, muitas vezes, nem o mais importante de todos. Concorre com fazedores de opinião, como o Tavares, o Pacheco ou o Pulido, por exemplo, sendo discutível se tem mais ou menos influência que eles na opinião política das pessoas.
Dir-se-á que houve um Presidente que usou o poder de dissolução do Parlamento por não gostar do governo e que, por isso, fica demonstrado que o Presidente tem um bombástico poder político, que usa a seu bel-prazer.
É verdade que tal aconteceu mas não é verdade que tal poder exista. O que está à vista de todos é a monumental evidência de se ter tratado de um absolutamente ilegítimo golpe de Estado, cometido contra os interesses da República, contra o espírito da Constituição e ao serviço de meros interesses partidários a que o Presidente, se fosse sério, devia ser alheio. Uma abstrusa excepção, que não serve para infirmar a regra.
A regra, em qualquer democracia civilizada, e na nossa também, é que o poder de dissolução se exerce quando o Parlamento não consegue gerar um governo. Houve quem a pisasse, mas a regra não deixou de ser a mesma por causa disso.
Temos, e continuaremos a ter como ocupante do Palácio Real de Belém, o mais caro de todos os comentadores políticos. Temos, e continuaremos a ter como ocupante do Palácio Real de Belém, uma espécie de desculpa constitucional para a ineficácia e a cobardia do Parlamento, cujos membros, em vez de usar os poderes que têm para dirigir os destinos da República, ficam à espera da intervenção presidencial e, diariamente, se desresponsabilizam.
É o terrível resultado da dupla legitimidade popular.
Argumentar-se-á com razão que os poderes do Parlamento, em boa doutrina, não podem ser absolutos, ou quase. A resposta a este problema está, em quase todos os países democraticamente estáveis, na existência de uma câmara alta. A House of Lords, no Reino Unido, o Senado em Espanha e Itália, por exemplo. Duas câmaras que se limitam mutuamente, ainda que com práticas e tradições de natureza diversa.
É ao conjunto destas câmaras que cabe a eleição do Presidente ou a confirmação do Rei, sem transformar nenhum deles em fiscal de serviço ou em comentador da vida do dia-a-dia, antes os resguardando para poder, com altura e legitimidade, representar o conjunto populacional, cultural, histórico, territorial e político do Estado, em suma, a Nação.
Muito se fala em revisão constitucional. Mas ninguém fala no problema da excrescência presidencial do regime nem na consequente necessidade que obviar à dupla legitimidade eleitoral.
Chega-se, por exemplo, ao cúmulo do despautério de considerar que é possível criar círculos uninominais sem pôr em causa a regra da proporcionalidade, como ontem ouvi ao número dois do PS (o Costa)!
Vale tudo, até a quadratura do círculo. O que não vale é tratar dos problemas constitucionais efectivamente existentes.
7.5.10
António Borges de Carvalho