O SEXO DOS ANJOS
A crise tem tido inúmeros efeitos colaterais, quer dizer, fornece aos interessados as mais variadas desculpas.
É boa desculpa para os desmandos e a incompetência do governo, depois de 5 anos a gastar dinheiro, a prometer mundos e fundos sem nada cumprir, a meter-se nas mais inacreditáveis estrangeirinhas, com este gran finale das confusões com PEC’s e mais PEC’s, cada um mais estúpido que o precedente.
É má desculpa para o Presidente espezinhar, em nome dela, os seus próprios princípios.
A crise serve para tudo. Até para fazermos os possíveis para a disfarçar.
É assim que as classes supostamente pensantes, políticos, jornalistas, professores, intelectuais, etc., andam entretidíssimas com a peregrina história das eleições presidenciais.
Que importância têm as eleições presidenciais? É uma boa pergunta, a que ninguém em boa consciência saberá responder.
Como é possível que as elites e, por influência delas, o povo em geral, se preocupem com a eleição de um senhor destinado a passar a vida a dizer coisas, e pouco mais do que isso?
Onde está a influência de tal senhor, para além de espicaçar o governo em discursos e em entrevistas de rua, qual treinador de futebol ou menina das telenovelas?
O que pode, verdadeiramente, tal senhor?
Não nos pode representar a todos, porque foi eleito por uma parte de nós e “deseleito” pela outra.
Representa a República? Sem dúvida. É o que diz a Constituição, por uma vez acertadamente. Em parte alguma está escrito que representa os portugueses, muito menos “todos os portugueses”, como reza a propaganda.
Quem representa República não pode, como todos os presidentes têm feito, andar a deslocar-se e a desbocar-se, em Portugal e lá fora, sobre coisas da política interna em que toma partido com frases sibilinas e críticas encobertas ou envergonhadas.
É por causa deste cargo que a Nação inteira anda a fazer contas? Parece que sim.
Vale a pena? Evidentemente que não.
A única vez que um Presidente exerceu o poder político que tem foi para cometer um indecente golpe de Estado, ilegitimamente destruindo uma maioria legítima, só porque tal maioria lhe não agradava. E para criar condições para pôr a sua gente no poder.
O crime compensou, para o PS. Para o país, está à vista a obra do Presidente.
A falácia que o classifica o Presidente como representante “de todos nós”, começa, uma data de meses antes de ser eleito, a monopolizar as opiniões para um problema que não existe.
Trata-se de um impotente político com uma bomba de hidrogénio na gaveta. Para quê?
Passo a explicar.
Para dar ao governo desculpas de vária ordem. Para ser “força de bloqueio”.
Para se armar em “reserva”.
Para evitar que o governo caia, em nome de uma estabilidade que a ninguém devia interessar.
Para ajudar a empurrá-lo pela porta fora, como se isso fosse encargo seu.
Para desculpar a oposição de não cumprir as suas obrigações.
O Presidente da República, no nosso quadro constitucional, é um empecilho incómodo e desgastante.
Porque não eleger o Presidente no Parlamento, ou num colégio eleitoral restrito, em vez de gastar milhões de euros de impostos e de energias das pessoas, como se as governasse ou devesse governar?
Já que, por desgraça histórica, Portugal se viu privado de que representasse a Nação (coisa constitucionalmente inexistente), então que se arranje um homem bom, culto, bem educado, que fale três ou quatro línguas, que saiba estar em toda a parte, um senhor que não nos envergonhe e que nada tenha a ver, senão formalmente, com os negócios circunstanciais, em vez de um tipo com 51% dos votos, encarregue de andar metido em tudo e em coisa nenhuma.
Porque não se acaba de uma vez por todas com esta palhaçada do semi-presidencialismo à portuguesa?
Não, não se acaba. A inteligentzia pátria não é capaz de perceber que as pessoas devem eleger os detentores do poder, não os berloques do regime republicano.
Quem criou a coisa andava às ordens de duas escolas bem claras: o francesismo universitário, sem sequer o saber interpretar, e o jacobinismo histórico, que levou a abjurar de tudo o que pudesse cheirar a II República, sem ter em conta que, em Portugal, quem inventou a eleição do Presidente por sufrágio universal foi o Estado Novo!
Portugal tem uma aversão brutal às coisas sérias. É por isso que se entretém, “guiado” pelas suas “elites”, com a veemente discussão das eleições presidenciais.
Os bárbaros (a miséria) à porta, e nós a discutir o sexo dos anjos.
30.5.10
António Borges de Carvalho