ROMPER, ROMPER!
Ao aproximar-se data em que faz 30 anos que Sá Carneiro morreu, é capaz de valer a pena pensar um bocadinho sobre o que, com ele, tivemos, e sobre o que, sem ele, hoje temos.
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Sá Carneiro comandou uma rotura. Rotura com o comunismo institucional, rotura com o socialismo dito democrático, rotura com um passado recente feito de tentativas totalitárias e de tibieza política nas subsequentes “soluções”.
Afastada a aterradora ameaça do sovietismo, importava dar sentido de liberdade à democracia, manietada que continuava por uma superestrutura eivada de preconceitos e de complexos.
Sá Carneiro não contemporizava, nem com o comunismo nem com o socialismo, nem com a continuidade, com vestes democráticas, da ordem instituída, inspirada pelo bolchevismo.
Por isso que tenha decidido e comandado o movimento libertador da AD, que tenha apostado na criação de uma sociedade sem garrotes estatais, coisa a que, durante muitas décadas, com um sinal ou com outro, a sociedade portuguesa se habituara.
Seria trabalho para uma geração. Mas era preciso começá-lo quanto antes.
Batido por ventos e marés, traído por até aí insuspeitas figuras do seu próprio partido, peado por problemas de saúde, Sá Carneiro não transigiu, não tergiversou, não desistiu.
Pouco mais de um ano depois de chegar ao poder, no auge de mais uma rotura, embrenhado na luta contra a continuidade socialista, bem ou mal corporizada pelo General Eanes, Sá Carneiro era assassinado. Ou era vítima de acidente - para quem em tal queira acreditar.
No princípio da AD, quando o movimento de apoio popular era já gigantesco, lembro-me de descer a Avenida da Liberdade com ele, na primeira grande manifestação de rua. À frente, um grupo de Zés-Pereira ribombava tambores. O ambiente era de exaltação, de júbilo, de esperança.
Junto de mim, Snu estava inquieta.
Lembro-me, como se fosse ontem, de lhe ter perguntado a razão do seu ar aflito. Sabe, disse ela, estes tambores, esta multidão, em vez de me alegrar, traz-me um cheiro a tragédia. Tenho a sensação de marchar, não para o triunfo, o futuro, mas para o cadafalso, o fim.
A minha juventude entusiástica respondeu com uma ironia qualquer. Só mais tarde viria a compreender a terrível premonição.
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Nos tristes dias que agora vivemos, um sem número de sabichonas vozes dedica-se ao fabrico de mezinhas para resolver os nossos problemas.
Ele é a “grande coligação”, ele é o “bloco central”, ele é o “acordo parlamentar”, o “pacto de regime”, o diabo a quatro.
Mais uma vez a resposta adequada ao estado em que estabilidade quer dizer crise - a única coisa estável que por cá temos - não é a das sabichonas vozes que se recreiam com cenários, que congeminam soluções. Soluções para quê? Para dar ainda mais continuidade a todas as crises em que estamos mergulhados? Para manter os mesmos actores, ainda que assessorados por novos? Para mudar algumas moscas em vez de limpar a casa?
Não. Não é disso que Portugal precisa. Precisa de rasgar, romper o colete-de-forças que o manieta, colete que a III República criou e do qual acabou por nunca se livrar, colete servido por políticos que, ao contrário de Sá Carneiro, se revêem, como Marcelo Caetano, numa espécie de “evolução na continuidade”.
Quem será capaz de tal rotura? Quem poderá ter a força moral, a tenacidade, a coragem, a temeridade de Sá Carneiro? Quem será capaz de denunciar o socialismo em todas as suas formas, até na sua forma “cristã”, mesmo que para isso tenha que assumir a sua própria tragédia?
Eis a pergunta que devíamos fazer, em vez de andar à procura de bengalas para estabilizar a desgraça.
16.11.10
António Borges de Carvalho