LOUÇAS & Cª
Almas puras e grandes defensores da “liberdade”, capitaneadas pelo Louça, por um senhor de nome Cintra Torres e por uma besta que é ministro do negócios estrangeiros na Austrália(!), andam por aí numa fona a demonstrar ao orbe a excelência moral da operação Wikileaks.
Trata-se, segundo os seus politicamente correctíssimos arautos, de um “novo paradigma”, de um enorme avanço na “liberdade” das pessoas, do nascimento de uma “nova era”, de bem-vindas “novas portas” que a idade da electrónica abre à humanidade.
Têm razão. É um novo paradigma, é a inevitável explosão do que de pior a internet criou: o anonimato, com o seu cortejo de irresponsabilidade, de ausência de escrúpulo, de fuga a qualquer norma moral ou cívica, de branqueamento da mais cobarde criminalidade.
Os chamados hakers, até há pouco criminosos de delito comum, passaram, de um dia para o outro, a heróis da liberdade. Os ladrões da internet passaram a jornalistas. Os traficantes passaram a honestos trabalhadores da informação. Um soldado traidor à pátria passou a paladino da “transparência".
O chefe, o patrão, o génio incompreendido que dá face à coisa, utiliza como chamariz publicitário a sua própria fronha amordaçada com a bandeira dos EUA. Uma imagem que define o inimigo, a intenção política que subjaz à “obra”. É esclarecedor. Diz-nos que o seu comércio não é o da informação, mas o de manobras políticas orientadas para o descrédito de uma nação cheia de defeitos mas, apesar de tudo, uma das maiores democracias do mundo, à qual devemos a liberdade propriamente dita, ou seja, a negação activa do totalitarismo e da mordaça.
Ao contrário dos passadores de droga e dos traficantes de carne humana, o patrão da trafulhice informática pode enriquecer à vontade à custa dos produtos que roubou e mandou roubar, pode vendê-los a quem quiser. Dá a cara, dirá quem me lê. Pois. Não é culpado de nada. Só publicita, só vende, só trata de material "que lhe mandam". Não roubou nada a ninguém, nem às pessoas nem ao Estado. É um santo.
Mais. O que o Wikileaks defende – o anonimato e a irresponsabilidade dos bandidos de cujas práticas é arauto – não pratica. Pelo contrário, exige a identificação de quem quiser dialogar com ele, assim criando valiosa base de dados, coisa vendável aos polícias da opinião com as indicações necessárias a perseguições de vária ordem.
Mas o génio é um herói. Se uma respeitável e democrática Justiça – a sueca – o acusa de coisas que nada têm a ver com o seu negócio, os Louças & Cª concluem que está inocente e proclamam tal inocência como dado adquirido e irrefutável. O homem, esse, aproveita para uma monumental campanha de publicidade, que está à vista de toda a gente.
O herói da Wikileaks está acima do Estado de direito, de nada pode ser, sequer, acusado. Nem pensar! O deus ex-máquina dos Louças & Cª é tão divino que a justiça dos homens nada deve poder contra ele. Tudo o que dele se disser é pura invenção.
Entretanto, não sei onde, uma gigantesca organização, valendo-se de omissões legislativas de diversa natureza, continua a trabalhar, atestando o florescimento do negócio, a estupidez pública e o aturado trabalho dos Louças Cª para a instauração do reinado do Big Brother, desde que o Big Brother sejam eles.
13.12.10
António Borges de Carvalho
Com a devida vénia, a seguir transcrevo uma lúcida prosa de José Manuel Fernandes, ínsita no “Público” de Sábado.
O debate sobre o WikiLeaks tem, a meu ver, omitido um ponto central: o das motivações do seu fundador, Julian Assange. Parece ser dado por adquirido que o australiano tem como objectivo uma maior transparência no funcionamento das nossas democracias, quando isso não á verdade. Assange, na verdade, nem pensa que vivamos em democracia. Em 2006, escreveu vários textos onde defendeu que os Estados Unidos - e o Ocidente em geral - não eram mais do que uma “conspiração autoritária” e que os seus lideres eram todos “conspiradores”. A única forma de deter tais “conspiradores” seria dificultar a forma como comunicam “uns com os outros”, gerando fugas de informação que obrigassem “o Estado securitário” a diminuir a capacidade da sua rede computacional, tornando-o assim “mais lento” e “mais estúpido”. Olhando para o impacto das revelações da WikiLeaks e para o que se prevê que aconteça no apertar das regras nas comunicações internas nos Estados Unidos, Julian Assange está a conseguir atingir estes seus objectivos.
Devem, pois, desiludir-se os que pedem ã WikiLeaks que revele também segredos da Rússia, da China ou do irão:
isso não faz parte da sua agenda política. E também é bom que, na comunidade jornalística, se saiba separar o trigo do joio: uma coisa é noticiar o que, mal ou bem, foi colocado no domínio público, o que deve sempre ser feito de forma livre e responsável; outra coisa é fingir que Julian Assange é um campeão da liberdade quando, na verdade, é um anarquista que manipula sem grandes escrúpulos enormes quantidades de informação e promove violações de comunicações secretas não em nome da transparência mas para tentar destruir o tipo de sociedade em que vivemos.
E bom sabermos ao que andamos e de que lado estão os que defendem a liberdade, assim como os que a utilizam para melhor a destruirem. Isto não significa deixar de noticiar os segredos revelados sempre que estes forem de interesse público, antes conhecer o terreno (minado) que se pisa.