O PREÂMBULO DA DESGRAÇA
Para que serve o preâmbulo de uma lei, seja ela qual for?
Para dizer o mínimo, a resposta é que se destina a esclarecer a intenção com que a lei é escrita, ou seja, é o primeiro recurso interpretativo para quem tiver dúvidas quanto à sua aplicação.
Vem isto a propósito da recente quão recorrente discussão sobre o preâmbulo da Constituição que temos, texto que, apesar de várias revisões constitucionais, se mantém inalterado desde 1976.
Qual a razão da polémica?
É simples. O tal preâmbulo é mal escrito, ambíguo e ideologicamente marcado. Atribui à Constituição a qualidade de corresponder “às aspirações do país”. Que aspirações? Generalidades sobre a democracia e a liberdade. Muito bem.
Mas não se trata de democracia e liberdade tout court. Nos termos do preâmbulo, a democracia e a liberdade servem para “abrir caminho para uma sociedade socialista”. Sociedade socialista que, “no respeito pela vontade do povo português” conseguirá “um país mais livre, mais justo e mais fraterno”.
Para além de estarmos perante uma vergonhosa pessegada lógica e ideológica, estamos também a braços com uma intolerável imposição de uma parte do povo sobre outra parte, impondo a “verdade” socialista a todos os que não acreditam nem aceitam o socialismo.
Somos livres, sim, desde que, obrigatoriamente (a Constituição é a mais alta fonte de todas as obrigações cívicas), aceitemos como bom caminhar para uma “sociedade socialista”. Ou seja, o socialismo, impingido como se se tratasse do paraíso na terra, sobrepõe-se à vontade democrática da sociedade, limitando-a na expressão dos seus desejos e aspirações e, implicitamente, considerando que não é legítimo aspirar a viver numa sociedade não socialista.
Numa palavra, segundo os conceitos que servem de base e inspiração à nossa Constituição, não somos livres.
Seria só ridículo, como o é boa parte da Constituição, se não fosse grave.
Talvez se possa entender que a Constituição sofreu os efeitos da horrível turbulência leninista dos tempos em que foi aprovada. Mas, como é evidente, nada justifica que, mais de trinta anos depois, passadas que foram várias revisões constitucionais, ainda tenhamos que nos envergonhar das abomináveis determinações do seu primitivo texto, a mais violenta das quais é a que estabelece a obrigatoriedade do caminho para o socialismo, como abominável seria que nos impusesse o caminho para outra coisa qualquer.
O CDS cometeu o inimaginável crime de propor a abolição do preâmbulo ou, pelo menos, a sua limpeza.
Nem pensar!
À excepção de um parlamentar do PSD (um!), toda a gente achou que não se devia mexer na repugnante coisa.
Quem quiser interpretar “autenticamente” a Constituição, terá que se ater ao “caminho para o socialismo”, e pronto.
Como afirmou uma besta qualquer do Bloco de Esquerda, os que não gostam da merdosa intenção querem substituí-la pelo “liberalismo económico”, assim “dinamitanto” a Constituição. Brilhante raciocínio: o homem vê-se ao espelho e julga que os demais são tão ordinários quanto ele.
A indigna criatura que roubou telemóveis aos jornalistas - a sua manutenção na ribalta diz tudo sobre o estado a que o PS chegou - desafia os contestatários: “Quando tiverem dois terços” retirem o preâmbulo, diz o canalha. Aí está um argumento digno de quem o produz.
Mas a mais extraordinária defesa da porcaria vem, quem diria, do ilhéu Mota Amaral, estranha personalidade com laivos de Opus Dei(!): “ainda hoje subscrevo o preâmbulo”, diz ele.
Este o estado em que ainda estamos.
Quando o mundo inteiro já percebeu que as soluções do futuro podem ter a ver com tudo menos com o socialismo, continuamos a patinar, atrasados, vítimas da nossa própria indigência mental.
Com 20% das pessoas a votar nos próceres da idiotia comunista.
Com um partido socialista transformado em pastagem da desonestidade e da mais ignorante e demagógica imoralidade.
Com um partido reformista que, a avaliar pelo que se passa com o preâmbulo da Constituição, nada será capaz, sequer, de tentar reformar;
Com um partido da direita que, apesar de se dizer não socialista e de não gostar do preâmbulo da nossa miséria, passa os dias a votar com a extrema-esquerda.
Que futuro temos se, tanto as “elites” como o povo em geral, ainda não foram capazes de perceber a origem do mal, nem o querem, simbolicamente que seja, extirpar da nossa vida?
16.12.10
António Borges de Carvalho