MALHAS QUE A POLÍTICA TECE
Fui por duas vezes ao Kosovo. Em 1999 e 2002, salvo erro.
Trata-se de uma sociedade onde a intolerância social, racial e religiosa subjaz àquilo a que, por eufemismo que fosse, se poderia chamar “comunidade”.
Os sérvios, antes senhores, passaram a perseguidos.
Uma criança sérvia, para ir à escola, precisava de escolta da NATO. O mesmo para uma mulher sérvia que fosse às compras. Os prédios habitados por sérvios eram guardados por tropas “residentes” e por patrulhas armadas até aos dentes. O bispo ortodoxo sérvio imperava numa espécie de Sé, a uns vinte quilómetros da capital, rodeada por um convento e protegida por tropas por todos os lados. O sérvio que tratava dos registos, passaportes e outras papeladas - formalmente, a Sérvia ainda detinha o poder - como achava que tudo estava “sossegado”, saiu uma vez sozinho; à esquina da rua levou com uma bomba no focinho.
Lá para o Norte, havia uma aldeia, tida por exemplar pelas força militares e pelo poder efectivo da EU, onde os sérvios se tinham entendido com os albaneses e onde havia uma certa cooperação. Isto, como é óbvio, sob protecção da NATO. Não sei o que veio a acontecer a tal aldeia.
Um pouco por toda a parte, via-se os estragos que os bombardeamentos norte-americanos tinham causado, todos eles cirúrgicos, a destruir o poder sérvio e a mostrar a impotência da Europa para resolver o problema por via militar, a não ser que arriscasse dezenas de milhar de vítimas.
Conheci relativamente bem o senhor Ibraim Rugova, líder moderado dos albaneses, cuja vida viria a ser ceifada por um cancro na altura em que mais necessário era para o seu povo e para os seus vizinhos.
Conheci também, por desagradáveis momentos, o chefe das milícias albanesas que as forças de ocupação procuravam transformar em chefe de uma nova polícia civil. Um latagão, metido com a sua temível gente num casarão solene e kitsh, com enormes Mercedes à porta, a testemunhar a riqueza e a segurança do fulano.
Contava-se a seu respeito as mais terríveis histórias. Para além de guerrilheiro nas montanhas, de destruidor de aldeias e culturas, dizia-se que tinha montado um pipe-line de carne branca proveniente da Rússia, Ucrânia, etc., que era canalizada para as arábias e para os bordéis das máfias europeias. Para além destas nobres actividades, constava, no currículo profissional do senhor, um sector dedicado ao contrabando de armas, com clientes sobretudo em Espanha e no Médio Oriente.
Pois esta notável personalidade ganhou as eleições no Kosovo independente. O Conselho da Europa considera-o chefe de uma rede responsável contrabando de armas, drogas e órgãos humanos (estes sobretudo obtidos via extracção de rins e outros pertences a prisioneiros sérvios) através da Europa de Leste.
Quer dizer, apesar do caríssimo apoio que a civilização lhe deu, o senhor Thaçi não se emendou. Tem até a vida facilitada pelo exercício do poder “democrático” e pelo euro - para quem não saiba, o euro é a moeda do Kosovo(!) - o que muito contribui para evitar as especulações dos clientes de rins e outros produtos “biológicos”…
A Europa resolveu estancar os vários afloramentos de genocídio na pretérita Jugoslávia. “Obrigou” os americanos a ajudá-la. Compreende-se.
Alguma coisa falhou. Rios de milhões correram por aquelas terras, e continuam a correr, sobretudo no Kosovo. A União Europeia empenhou-se, e continua a empenhar-se, literalmente, na protecção de gente que elege dirigentes como o senhor Thaçi. O tribunal da Haia, para os Kosovares, parece não existir. O banco central europeu, tão preocupado com os perniciosos efeitos monetários dos governos da Europa do Sul, esquece-se dos euros que são despejados e circulam por aquelas bandas, no Kosovo, no Montenegro e não sei mais onde.
A partir de um não declarado protectorado criou-se mais um Estado, formalmente democrático, realmente rogue.
Não sei, em concreto, que erros foram cometidos, ainda que muitos pudesse arrolar, a benefício de inventário.
Sei que se deu direito de cidade a quem direito de cidade não merecia. Sei que, se algum caminho de “decência” vier por sorte a ser tomado na região, será daqui a muitos anos. Sei que o que estas coisas custam aos bolsos dos europeus, tão aflitos com os seus problemas e tão esquecidos dos problemas que sustentam, sem contabilidade, sem controlo e sem que os pagantes o saibam.
Pobre Europa!
16.12.10
António Borges de Carvalho