NO RESCALDO DO REFERENDO
Eleitores – 8.832.628
Votantes – 3.851.613
Brancos – 48.185
Nulos – 26297
Sim – 2.238.053
Não – 1.539.078
Números são números. 25,34% dos eleitores portugueses determinaram que o aborto passa a ser livre, se executado pelo Estado ou por quem o Estado autorizar, até às dez semanas de gestação, a pedido da mulher, não tendo o pai da criança, mesmo que a senhora seja casada, qualquer sombra de voto na matéria.
Trata-se de mais ou menos o mesmo número de eleitores que pôs o dr. Sampaio em Belém. Ninguém negará a legitimidade da coisa. Está feito.
17,42% opuzeram-se à decisão. 57,24% ou não puzeram lá os pés, ou borrifaram no assunto por outras formas: ao todo, 5.055.434 de não-me-macem-com-essa-história, em 8.832.628.
Primeira observação: para quê o referendo? Que ganho de legitimidade se obteve? Se se resolvesse o assunto por via parlamentar, com certeza se obteria maIs, ou seja, mais portugueses estariam representados no Sim e no Não parlamentares do que no Sim e no Não referendários. Com a virtual virtude, passe a expressão, de, vinda outra maioria, os portugueses, através dos seus representantes, poderem resolver o assunto de outra maneira.
Donde se prova que o referendo é um instrumento perigoso e, na medida em que “amarra” os decisores futuros, objectivamente anti-democrático.
Feita a condenação do referendo em geral, o que reconheço ser discutível, vale a pena dizer umas palavrinhas sobre esta consulta em particular.
Não sei se foi o ambiente de engano, de mentira, de falsidade que o senhor Pinto de Sousa (Sócrates) introduziu na nossa vida política o que motivou a “atmosfera” deste referendo. Talvez não. Talvez o senhor Pinto de Sousa (Sócrates) não seja, excepcionalmente, o culpado.
A verdade, porém, é que todos fomos enganados. Os que votaram Sim e os que votaram Não. Os primeiros, por julgar que estavam a descriminalizar uma coisa que, afinal, criminalizavam.
Os segundos, porque funcionaram como idiotas úteis, isto é, votaram numa coisa em que ninguém estava interessado, a começar pelos próprios líderes do Não, que meteram os eleitores numa floresta de enganos.
Vejamos:
A partir daqui, o aborto é “despenalizado” até às dez semanas. Primeira verificação: o aborto não é “descriminalizado”, é desculpado até às dez semanas, continuando crime, penalizado a partir daí*. Não se sab sequer, o que vai acontecer aos abortos realizados mais tarde, e que a lei em vigor já despenalizava.
A “caridosa bonomia” dos tribunais em relação a quem aborta deixou de ter fundamento, uma vez que, ou a lógica é uma batata ou ganhou força a penalização a partir das dez semanas. Pelo que as meninas e senhoras que se distraírem e abortarem depois das dez semanas passam a ir para a cadeia, coisa que antes, à tort ou à raison, não acontecia. Quem votou Sim, ou o fez de pé atrás, o que será o caso da classe política empenhada no assunto, ou foi enganado.
Os partidários do Não foram metidos na mais extraordinária campanha que se possa imaginar. Os habituais “defensores da vida”, afinal, não o eram tanto quanto isso. Passaram toda a campanha a dizer “não mas”. A este respeito, tudo se sintetiza, e simboliza, nas posições malabaristas do Prof. Sousa, aliás magnífica e esmagadoramente retratado pelo Gato Fedorento no que é, na minha opinião, o mais fabuloso sketch de todos os tempos da televisão portuguesa – e do youtube. A incoerência não pagou. Os que, sinceramente, eram pelo Não, foram de tal maneira confundidos pelos líderes da campanha que, ou foram votar Sim (vale a pena votar Não quando os que deveriam ser os principais defensores de tal opção passaram meses a tergiversar sobre o assunto?), ou mantiveram a suficiente coerência até ao fim, contra os ventos e as marés que, do seu próprio lado, lhes baralhavam a consciência.
No fundo, é simples.
O Sim queria “perdoar”. Chamem-lhe “despenalizar”, se quiserem. Substancialmente, é indiferente. Continua a ser crime, mas sem pena.
O Não queria que não houvesse “despenalização”. Mas que ninguém viesse, por isso, a ser condenado. Onde está a diferença? Venha o mais truta e responda.
A única diferença é que o Sim, desculpabilizando, oferece higiene à coisa. O Não insiste na culpabilização, implicitamente mantendo des-higienazanda uma coisa que dizia perdoar.
Então, mais que não seja por questões de higiene, ainda bem que ganhou o Sim.
Os tipos do Sim invectivaram os do Não por defenderem o absurdo de um crime sem pena, que é exactamente o que eles próprios faziam.
Ou seja, todos andaram a enganar o povo.
Os tipos do Não, em vez de ser fiéis aos seus princípios (se há ser humano após a concepção, então o aborto é homicídio desde o primeiro dia), andaram a ceder às exigências do Sim, dizendo que era crime mas que não queriam saber disso para nada. Ora bolas. É evidente que estas confusões, lançadas no espírito das pessoas pelas maluquices do Prof. Sousa** e quejandos, acabaram por fazer ganhar o Sim, e por larga margem.
De um lado e de outro, o que houve foi uma monumental mistificação, uma despudorada ausência de escrúpulos, uma saca de aldrabices. Não admira que a genuinidade do referendo (de todos os referendos) tenha ficado em causa.
António Borges de Carvalho
* O texto proposto para a lei que se seguirá ao referendo corrobora esta afirmação: “Não é punível a interrupção voluntária da gravidez efectuada por médico ou sob sua direcção, em estabelecimento oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida (…), a pedido ma mulher, nas primeiras dez semanas de gravidez, para preservação de sua integridade moral, dignidade social ou maternidade consciente.” (a pobreza do português é do texto, não minha).
** O prof. Sousa é pública e notoriamente perito em jogos circences. Nunca ganhou nada com isso, mas insiste. E há quem continue a dar-lhe crédito, e tempo de antena!