IDEIAS TONTAS
Numa entrevista publicitária dada por um ministro do governo socréfio ao Diário de Notícias, re-surge esta notável ideia: “defendemos a criação de círculos uninominais de candidatura, compensados por um círculo nacional”.
Há anos que esta coisa vem fazendo caminho nas mentes privilegiadas dos nossos pensadores. Talvez valha a pena relembrar um textozinho que, em 2001, publiquei a este respeito (in, “O Presidente de Nenhum Português”, Borges de Carvalho, António, Publicações Europa-América).
Os círculos uninominais
Seja qual fôr o processo de eleição dos deputados, nas democracias representativas, verifica-se sempre a proeminência política e funcional de uma minoria e o apagamento da maioria dos eleitos em face do grande público.
A crítica surge, inevitável, umas vezes bem intencionada, outras com objectivos de inspiração ou intenção totalitárias, outras ainda proveniente de comentadores mais ou menos mentecaptos. Os deputados não fazem nada, a sala do plenário está vazia, a maior parte dos fulanos só serve para se levantar e sentar nas votações, etc..
É evidente que, em todos os parlamentos como em todos os grupos humanos, há quem se enquadre nestas apreciações. Mas, posso afirmá-lo sem qualquer rebuço de dúvida, trata-se de excepções que confirmam a regra. E a regra é a do trabalho, umas vezes mais árduo que qualificado, outras o inverso, muitas vezes trabalho ignorado, que não dá “caxas” nos jornais nem barulho na televisão, mas que não deixa por isso de ser trabalho, quantas vezes da melhor qualidade.
Os backbenchers (os tais das filas de trás que só se sentam e se levantam quando é preciso) são, na maior parte dos casos, os chamados deputados locais, isto é, eleitos que assumem uma qualquer condição regional e que atribuem a si próprios a função de proteger os interesses lá da terra, em vez da de intervir nos grandes debates políticos e legislativos nacionais.
Desde sempre, e em todos os parlamentos inorgânicos, seja a eleição feita por sufrágio proporcional, como entre nós, ou por sistema maioritário, como no Reino Unido, a natureza do mandato é nacional e não local. Mesmo os deputados eleitos por círculos uninominais (as constituencies britânicas) são representantes da universalidade da Nação, ou do Estado, e não do círculo que os elegeu. Aliás, de outra forma não poderia ser. É da própria natureza da Democracia que assim seja.
Em boa doutrina, ou, dito de outra forma, maximalizando o conceito, legítimo não seria que os deputados se assumissem como meros representantes locais, ou que atribuíssem à defesa dos interesses da região a principal, senão única, finalidade da sua função.
A divisão do universo eleitoral por círculos é um processo técnico que simplifica o acto eleitoral e não uma forma de “dividir” por círculos a representação nacional, tão una como única é a soberania que, no seu conjunto e na mais nobre das sedes, os deputados representam.
No entanto, sabido é, como acima dizia, que uma substancial parte dos eleitos faz da representação regional o seu objectivo, ou porque não tem vocação política ou por que não lhe é dado, por limitações culturais, lançar-se noutros voos, ou ainda por questões de ordem eleitoral, cumprimento de promessas, garantia de recandidatura, etc.
O grande público desconhece as intervenções produzidas, normalmente no chamado PAOD (período antes da ordem do dia) pelos deputados “locais”. Trata-se de discursos inflamados, prenhes de loas à sua região, a reivindicar melhoramentos, a queixar-se de favoritismos, a glorificar os heróicos portugueses de antanho originários lá do sítio. Quem assiste perguntará: o que é que este tipo quer?, é para isto que serve a Assembleia?
A resposta é simples. O discurso do deputado “local” será publicado na primeira página do jornal do círculo (cujo director é amigo do deputado), aparecerá na folha da paróquia, será transmitido na rádio local e até, quem sabe, referido na homilia da missa no Domingo seguinte. O deputado “local” fará um vistaço, por causa de um discurso a que a Nação não teve acesso (nem teria para ela interesse de espécie nenhuma), mas que os seus conterrâneos apreciaram, pela positiva ou pela negativa, e que, se calhar, nos cafés do distrito, foi discutido apaixonadamente.
A existência de deputados “de primeira” e deputados “de segunda” será um defeito, um capitis deminutio dos parlamentos, uma infeliz inevitabilidade, um fruto de uma lei eleitoral mal concebida. Serão os deputados “de segunda” uma excrescência, uma inutilidade cara, um elemento de desprestígio da instituição parlamentar. Talvez. Mas, se tentarmos olhar um pouco mais fundo, compreenderemos que não pode haver partidos sem estruturas locais, que muitos dos que muito trabalham politicamente na sua região se sentem no direito, se calhar com razão, à compensação de vir a ser eleitos por virtude desse mesmo trabalho, nos mais dos casos ignorado mas que mantem viva a chama da intervenção política e do interesse pelo quotidiano esforço que mantem os partidos políticos, como todos os seus defeitos, é certo, mas com a preciosíssima utilidade que advem de serem elementos do sistema democrático liberal, coisa que nunca existiu sem que partidos existissem.
Os deputados backbenchers não estão, por o serem, a mais, nem a sua existência contribui para o desprestígio parlamentar ou para a menor qualidade dos seus trabalhos. E não é raro que algum deles acabe por se distinguir e até por vir a tomar, merecidamente, altas posições políticas.
Procurei demonstrar que, ainda que um pouco à revelia do essencial da missão do deputado (a representação da soberania do povo e da generalidade dos cidadãos), uma parte importante deles se dedica a assuntos locais sem importância nacional, deixando para uma “primeira linha” as tarefas legislativas e fiscalizadoras que à instituição parlamentar competem. Tal não é, em boa doutrina, um bem, mas, na prática, acaba por não pôr em causa o funcionamento do sistema, nem ter efeitos perniciosos para a Democracia.
No entanto, soe certa opinião alardear que os deputados actuam divorciados dos que os elegeram, que os eleitores nem sabem quem eles são e que, à boa maneira britânica, deviam os deputados passar a vida num escritoriozinho em Freixo de Espada à Cinta, a auscultar os anseios dos respectivos munícipes.
A argumentação é fácil e dá sempre dividendos para quem não encara a Democracia Liberal (a única que existe) com grande entusiasmo. Partindo de uma noção completamente distorcida da natureza do mandato dos deputados, chega-se a uma sibilina condenação do sistema, por alegado “divórcio” entre eleitos e eleitores. Os eleitos não “ligam” aos eleitores, estes não se sentem representados... portanto o sistema não é bom porque não cumpre a mais sagrada das suas missões: representar “o povo”.
É a partir de raciocínios deste tipo que se chega ao organicismo, à “democracia” piramidal e, porque não dizê-lo, a totalitarismos de vária ordem e inspiração.
Entre nós, tal torcionarismo dos conceitos tem feito escola, sendo os próprios partidos democráticos quem aparece a defender alterações ao sistema nele inspirados, designadamente as iniciativas (que parece serem já imparáveis) para estabelecer um sistema eleitoral que consagre a existência de deputados “nacionais”, lado a lado com deputados “locais”. Em vez de considerar a existência, que a prática confirma, de deputados que, à revelia da natureza do mandato, se assumem como locais, o objectivo é mudar-lhes, à nascença, a natureza, mudando assim a natureza do próprio regima democrático.
Pretende-se, para colmatar os malefícios do alegado divórcio entre representantes e representados, criar um sistema em que, à partida, os parlamentos serão constituídos por duas classes de membros: os que representam a Nação, e os que mais não fazem que ser mandatários de um circulozito qualquer. Se estendermos um pouco as consequências desta brilhante iniciativa, não tarda tenhamos, na mais elementar lógica das coisas, deputados com direito a dois votos e deputados com direito a um só, deputados com iniciativa legislativa nacional e deputados para portarias municipais ou regionais, etc. De facto, a que título é que um deputado “local” se pode arrogar o direito, por exemplo, de querer alterar o Código Civil, ou de, sobre matérias como essa, ter os mesmos direitos que um deputado eleito pela Nação inteira?
A memória política é escassa, sobretudo num país cuja história recente ou não é de todo ensinada, ou é-o de forma marcadamente ideológica, ou cujo ensino não passa de lambuzadela mais ou menos acéfala. Talvez não seja, porém, inútil lembrar os defeitos eleitorais do constitucinalismo monárquico, aliás repetidos, tim-tim por tim-tim, pela primeira república, defeitos que consistiam, precisamente, em “localizar” a origem dos mandatos, de forma a fazer depender todo o sistema de formação da legitimidade nas variadas dialéticas, questiúnculas e interesses de natureza local, parcial e menor, e em, por consequência, transformar o parlamento num areópago de caciques ou de seus representantes, invertendo sem apelo toda a lógica da representação nacional e infectando de menores motivações a nobre arte de legislar.
Foi por esse caminho que, na falta de um poder independente (o poder real), a primeira república depressa degenerou em ditadura, ditadura que viria, a fim de se perpetuar, a, com o maior dos cinismos, evitar a todo o custo que tal poder viesse a ser reestabelecido.
As considerações de carácter histórico valem o que valem e não são propriamente o que está na moda. Não valerá, por isso, a pena nelas insistir.
Mas talvez possa não ser dispiciendo que fique escrito, nem que a título de grito de alarme ou de desespero, que o sistema híbrido de eleição dos deputados põe irremediavelmente em causa a própria natureza do sistema democrático, ao atribuir diferentes legitimidades aos mandatados, ao criar “classes” entre eles, classes que não são fruto de uma praxis ou da natureza ou mentalidade individual dos eleitos, mas de handicaps originários e fatais, ao fundar dois parlamentos dentro do mesmo parlamento, como que na estulta pretensão de criar uma segunda câmara (defensável, em certas circunstâncias) resguardando-se da vergonha(?) de o fazer, numa atitude que, em relação a alguns, se pode atribuir a ignorância e a iliteracia políticas, mas que, quanto à maior parte, é fruto de demagogia barata, de oportunismo eleitoral, e de observância do que, circunstancialmente, se transformou em “politicamente correcto”.
À tão propalada argumentação quanto à falta de “qualidade” do parlamento e dos seus membros deve responder-se dignificando corajosamente a instituição, procurando chamar a ela, por via dessa dignificação, aqueles que, por serviços prestados, competência pessoal ou talento político, melhor possam defender os interesses dos cidadãos, e jamais através de uma forçada “popularização”, inda por cima “localizada”, que, fatalmente, aproximará a assembleia daquelas que seria natural não querer ver ressurgir.
Era preciso que, nestas matérias, e da parte da classe política e dos leaders de opinião, uma noção clara e precisa do que é o regime democrático, servida por uma feroz intransigência no que se refere às condições básicas do seu funcionamento, se sobrepuzesse a considerações eleitorais, à cedência a movimentos de opinião mais ou menos mal informados, a argumentações fáceis e destituídas de sentido das consequências, bem como a essa catastrófica e quase criminosa invenção do nosso tempo que, sob a capa da “correcção”, não mais é que pura e simples cobardia perante a moda, a circunstância e a demagogia.
O processo técnico (a divisão por círculos, uninominais ou não, o sistema maioritário ou proporcional) de eleição dos membros do parlamento não tem a ver com a natureza do mandato. Esse, para que haja Democracia e para que o sistema tenha condições para funcionar, não pode deixar de ser, sempre, nacional. O sistema que temos (o proporcional), por imperfeito que seja, tem demonstrado satisfatórias virtualidades de funcionamento e de representatividade.
Admita-se que alguém o pretenda aperfeiçoar. Admita-se, até, que, por absurdo, alguém possa defender o fim da proporcionalidade, a eleição geral por círculos uninominais, o sufrágio maioritário em todo o país. O que não é admissível, e constitui, para além de um crime contra a Democracia um atentado à inteligência, é essa desgraçada iniciativa, com justificações de pacotilha, de hibridificar o sistema, condenando-o a uma morte inevitável e a um ridículo sem nome.
António Borges de Carvalho