DOS MALEFÍCIOS DA REPÚBLICA
Ficou patente, durante a crise criada pelo Presidente Sampaio para expulsar o governo Santana Lopes, que o seu autor não tinha fundamentos sólidos para fazer o que fez. Arranjou umas desculpas mais ou menos esfarrapadas, ora uma ora outra, toda gente tendo ficado a perceber, concordasse ou não com a presidencial decisão, que a coisa era por demais discutível e que o Presidente Sampaio, não podendo justificá-la por preferências políticas, tinha as maiores dificuldades em o fazer.
Tanto assim que, mais de dois anos depois, o dr. Sampaio, prenhe de má consciência, ainda anda pelas capelinhas a perorar sobre o assunto. Desta vez, numa sessão qualquer, resolveu desculpar-se com a absurda ideia de que ao Presidente compete auscultar a vox populi e agir em conformidade. Se a vox populi não confirmar, nas urnas, as suas atitudes, então, diz ele, o Presidente fica com “cara de parvo e com vontade de se meter debaixo da mesa”
Se eu não fosse uma rata já muito velha, quem ficava com cara de parvo era eu, perante a clarividência desta afirmação.
Quer ela brilhantemente dizer que o Presidente é livre, perante sondagens, manifestações ou campanhas de imprensa, de achar que o governo em funções não goza de suporte maioritário e que, perante tal achamento, lhe compete dissolver o parlamento, já que não tem poder para demitir o governo. Os mandatos eleitorais tornam-se, assim, letra vã, e os mais elementares princípios do sistema cedem perante o que o Presidente acha.
Será que o dr. Sampaio defenderá a dissolução do parlamento quando o governo Pinto de Sousa (Sócrates) estiver em baixa nas sondagens ou for vítima de algum ataque do prof. Sousa? Parece que não.
O Presidente Sampaio colaborou activamente, de braço dado com a esquerda em geral e com a dupla Cavaco/Sousa em particular, para a formação de uma onda de opinião. Quando sentiu que a onda estava em alta, e que os partidos da sua áerea política (PS/PC) estavam devidamente preparados, cavalgou-a, assim provocando a substituição de um governo de outra cor por um da sua. Haverá quem ainda não tenha percebido?
O pior, porém, é que o dr. Sampaio, em vez de assumir com coragem as evidentes razões que o motivaram, continua, afanosamente, à procura de desculpas. A seu favor, diga-se que é bonito ter remorsos. Quer dizer que tem consciência. Contra ele, diga-se que o que fez, fez, não sendo bonito continuar a esbracejar justificações, cada dia mais absurdas.
Desta vez, veio o senhor contar uma longínqua história. Diz ele que não esteve de acordo com as alterações operadas na revisão constitucional de 1982, no que aos poderes presidenciais diz respeito. Votou-as “por disciplina partidária”, mas teve o cuidado de escrever um papel a dizer que discordava. É verdade. Em 1982, o dr. Sampaio, oriundo de organizações de extrema esquerda burguesa e bem pensante (GIS, IS, MES…), tinha migrado para ala esquerda do PS, ala que, entre outros constitucionais primores, impediu o fim da irreversibilidade as nacionalizações. Ala que queria, de braço dado com o General Eanes e com o PC, manter a tutela presidencial e militar sobre a democracia portuguesa. Apesar de vencidos, conseguiram que ficasse, na Constituição, o poder de dissolução. No entanto, julgo que até o dr. Sampaio concordará que o poder de dissolver o parlamento se reveste de uma delicadeza extrema e que o Presidente, empenhado em defender a Constituição e o sistema, se deve sentir compelido a pegar no assunto com pinças e a rodear-se das maiores cautelas. Se assim é, legitimamente se perguntará quais as fontes de interpretação da norma que o Presidente deveria consultar para fundamentar a sua decisão. A resposta é simples: a primeira de todas as fontes (a Lei consagra-o e não há quem discorde) é conhecer do espírito do legislador que consagrou tal poder. Não seria difícil: o espírito do legislador que aprovou as alterações está abundantemente documentado. É possível saber, sem lugar para dúvidas ou tergiversações, com que intenção e em que termos foi consagrado o poder de dissolução pela maioria qualificada que o deixou passar.
Mas o dr. Sampaio, certo de que por aí se não safava, vem agora confessar que as fontes foram outras. Antes de mais, a sua própria opinião, por escrito manifestada, contra a da maioria qualificada que aprovou as alterações, maioria de que, ainda que à contre coeur, fazia parte. Como se a sua opinião (vencida com o seu voto!), em 1982, tivesse a ver com a intrepretação autêntica da Constituição. A seguir, o dr. Sampaio refere um dr. Novais, seu consultor em Belém, o qual parece ter inventado o conceito de poder em dueto, não sendo claro o que vem nos jornais sobre quem seja o outro membro do dito. Finalmente, et pour cause, refere o dr. Sampaio a opinião, por certo isenta e científica, dos profs. Moreira e Canotilho, ambos membros da minoria vencida em 1982. Isto para não falar do eterno Duverger, que serve para tudo e mais alguma coisa quando se trata de “presidenciar” o sistema.
Quer dizer, e desculpem se me repito: o dr. Sampaio, ao lançar a bomba atómica, foi à procura de razões a toda a parte menos àquela onde devia ter ido. Porquê? Porque sabia que estava a tomar uma decisão contrária ao espírito e à intenção constitucionais. O facto de comentadores e cientistas do direito justificarem, com argumentos técnicos, as suas posições pessoais (como Novais, Moreira e Canotilho), não implica que a Constituição queira dizer o que os que a redigiram e aprovaram não quiseram que dissesse.
É muito feio o que o dr. Sampaio anda a fazer. Podia ocupar-se da caridade universal, que tanto o interessa, da gestão do Pavilhão Real das Necessidades, onde confortavelmente se acomoda, dos destinos do Sporting, que tanto ama, ou do que lhe viesse à cabeça. Não teria eu nada com isso. Mas andar para aí a confessar-se, insistindo na balela de que o golpe de estado constitucional não foi um golpe de estado constitucional, é coisa que me irrita.
Acrescente-se a recorrente história de que o Presidente "não é um corta-fitas", nem "a Rainha de Inglaterra", nem “o notário do regime”.
Pois não. E é pena. Não consta que a Rainha de Inglaterra seja um peso morto, ou inútil, no sistema Britânico. Bem pelo contrário, é a digna representante do Reino Unido, como tal universalmente reconhecida. Como os Presidentes da Alemanha ou da Itália, por exemplo (os “notários”, na opinião do sr. Sampaio), têm a distância, a altura e a dignidade suficientes para representar os seus países, sem se meter em querelas nem precisar de andar a fazer politiquinhas pelos cantos. Quem “manda”, no Reino Unido, na Itália ou na Alemanha, são os governos legítimos para tal apontados pelos respectivos parlamentos, e por eles apoiados, vigiados e criticados. E quem, nesses felizes paízes, representa a “República”, sem pendurezas circunstanciais, são a respectiva Rainha e os respectivos Presidentes. A ARainha mais que os Presidentes, mas isso é outra história.
Por cá, desgraçadamente, andam há muito os Duvergés e os “franciús” em geral a inquinar-nos a vida política e a fornecer desculpas aos torcionários do sistema.
António Borges de Carvalho