SOVIETISMO NÓRDICO
Aqui há tempos, fui ao IKEA. Entrei pela única porta para tal autorizada. Comecei a andar pela coisa fora. Depressa percebi que, ou fazia o percurso todo, tipo vaca no corredor da morte, ou estava lixado. Não saía de lá. Fiz a obrigatória via sacra. Comprei duas coisitas que talvez fossem úteis, mais umas cinquenta a que a minha mulher não resistiu.
Passámos o horror das caixas. Não vale a pena descrever o intricadíssimo e demoradíssimo sistema. Uma das nossas aquisições tinha que ser levantada numa secção especializada. Além disso, a minha mulher lembrou-se do que nos tinha levado à coisa: buscar um saco de compras que a minha filha tinha lá esquecido na véspera e que, via telefone, a distinta organização informara ter sido encontrado.
Para receber a compra, fui para uma bicha, papelinho na mão, trezentos e vinte e nove. Uns vinte ou trinta desgraçados estavam na mesma situação.
Para recuperar as compras da minha filha, a minha mulher foi para outra bicha, papelinho na mão, número oitocentos e vinte e nove. Outro bando de desgraçados à espera. Havia mais, noutras bichas, para efeitos que me não dei ao trabalho de investgar quais fossem.
Largos tempos depois, contentíssimo por me terem entregue a minha compra, fui ter com a minha mulher. Lá estava, coitada, a ser atendida por uma indivídua. Pareciam discutir. Achei estranho, porque a minha mulher raramente discute. Encurtando razões, o que se passava era o seguinte: a minha mulher queria, muito simplesmente, que lhe fosse entregue o saco perdido. Exibia o talão do multibanco, a factura, bem como o nome da senhora que, pelo telefone, tinha confirmado o achamento. Nada a fazer. A distinta organização, em vez de guardar o saco, por vinte e quatro horas que fosse, não senhor, as coisinhas, muitas, tinham regressado às respectivas prateleiras, havendo que as ir lá buscar outra vez. Só que, nem a menina que discutia com a minha mulher tinha tal função, nem havia outrem que a desempenhasse. Por outro lado, a menina que tinha confirmado que o saco tinha sido encontrado não estava de serviço, não havendo, por isso, forma de confirmar se nós tínhamos razão ou se estávamos a querer roubar os suecos.
Encurtando razões outra vez, diga-se que o resultado da diligência foi nenhum, isto é, a minha filha ficou sem as comprinhas. A solução seria que nos dessem uma nota de crédito sobre os produtos que, pagos por ela, se encontravam outra vez à venda nos escaparates da organização. Nem pensar. Qual nota de crédito, qual carapuça!
A história podia ter acabado aqui. No entanto, a fome (e a estupidez) levaram-nos a, depois de pôr as comprinhas no carro, decidir ir almoçar ao restaurante da IKEA.
Foi uma experiência inesquecível. Para além de umas calistíssimas saladas, os tipos fornecem uma comida sem descrição possível. Dificilmente se pode cozinhar pior. Ou então trata-se de comida sueca, razão da nossa malograda experiência gastronómica. Esta última tese é, aliás, corroborada pela existência de umas prateleiras identificadas como produtos "locais", onde se amontoam algumas nojentas versões de certos pratos portugueses. Veja-se o carinho com que os fulanos nos tratam: somos os "locais". Isto por cá, no parecer dos sapientíssimos escandinavos, não é um país, é um local. Como o WC ou a secção B do parque de estacionamento.
Mas a odisseia continuou. Quando, podres de fome e de nojo, quisemos ir embora, quais quê! Não havia saída. Ou seja, havia, desde que déssemos outra vez a volta completa às instalações, como as vacas no corredor da morte. Foi o que acabámos por fazer, cansados, tristes, mal dispostos.
Há uns anos, em Paris, comprei uma estante e um sofá no IKEA. O sistema é parecido, mas tem algumas diferenças.
Se eu comprar uma estante e um sofá em Portugal, tenho que os ir buscar à floresta das prateleiras, amargar com eles às costas e, depois de passar com a carga pela caixa, providenciar pelo transporte ou ir para uma bicha onde, duas horas passadas, contrato o dito. Em Paris, escolho a estante, a menina dá-me um papel, vou à caixa, pago e, no dia combinado, aparecem uns tipos que me põem a estante em casa. Pagando, claro, mas isso é normal.
Veja-se tão só a diferença de tratamento que o IKEA dá aos parisienses e aos "locais".
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Por estes dias, com magníficas parangonas, vem o estado socréfio propagandeando que a IKEA vai fazer umas fábricas, umas lojas, etc., bó bó bó. Grande alegria para os habitantes do "local".
Só que houve um autarca que veio dizer, certamente ultrapassando as instruções ministeriais, ou os ministeriais desejos, que os escandinavos vão passar não sei quantos anos sem pagar IMI, mais não sei quantos sem pagar isto e outros tantos sem pagar aquilo. Chegado o fim do prazo das benesses, ou me engano muito ou vai ser preciso renová-las, sob pena de os fulanos darem à sola, a caminho de outros "locais" e de outros papalvos.
Se eu quiser fazer uma fábrica de móveis, diga, senhor ministro, diga, senhor autarca, quais as borlas e benesses a que tenho direito. Arrisco, sem medo de errar, que, por outras palavras, me vão responder que isso não é para "locais", que os "locais" têm que cumprir as suas obrigações cívicas, ou seja, fiscais. Ou não?
António Borges de Carvalho