AREIA NOS OLHOS
Há coisas que fazem uma confusão dos diabos.
A presunção da inocência é princípio constitucional em qualquer país civilizado. Quer isto dizer a) que a condenação em tribunal é o único critério definitivo para aferir da culpabilidade dos cidadãos e b) que a presunção da culpa não existe em direito, o que existe é a suspeita que pode levar à investigação.
Também é princípio da mesma natureza que quem for tido como tendo cometido um crime deve ser julgado e condenado ou não, segundo a lei penal.
O que se passa entre nós contraria cada vez mais estes princípios.
Por um lado, há um vasto número de cidadãos tolhidos na sua liberdade e privacidade pela simples razão de, alegadamente, estar em posição de cometer ilícitos criminais ou por ser suposto, seja por quem for, como tendo-os cometido ou podendo vir a cometê-los.
Por outro, não poucos indivíduos há, que sendo justamente investigados e acusados, acabam, mercê de manobras legais de diversa ordem, por sair incólumes das alhadas em que se metem e por andar por aí no melhor dos mundos, mesmo que seja evidente e até tenha sido provada a sua culpa.
As coisas, como o IRRITADO várias vezes tem dito, estão de pernas para o ar. Condena-se sem julgar e julga-se sem condenar.
Mau é parecer. Fazer, nem tanto.
Em imparável arrancada legislativa, carregada de suposta moral, vão os nossos deputados, por previsível unanimidade, aprovar a criminalização do chamado “enriquecimento ilícito”.
Mais uma asneira, mais uma trapalhada que acabará por dar enorme descanso a inúmeros criminosos. Porquê? Porque se não respeita o principal.
Ilícito não é o enriquecimento, mas podem sê-lo os actos que a ele levaram. Estes estão incluídos, tipificados e serão punidos segundo a lei penal.
Arranjar mais leis para sobrepor às existentes, como é gritantemente o caso, só aumenta a confusão e as complicações jurídicas e jurisdicionais. A complicação e a confusão, quase sempre, funcionam a favor de quem tem alguma coisa a esconder.
Está aí, à vista de todos. O que são os casos de Isaltino Morais, Dias Loureiro, Rendeiro, Oliveira e Costa, Pinto de Sousa, e tantos, tantos outros, conhecidos e desconhecidos, que por aí andam sem que, para além do que as pessoas lêem ou leram nos jornais, ninguém saiba se são culpados ou inocentes? Uns, os que são culpados, provavelmente acabarão por se safar. Os que estiverem inocentes, da fama não se livrarão.
Tudo de pernas para o ar.
A partir da entrada em vigor da manifestação de inteligência legislativa que a tão desejada lei representa, as coisas vão ser mais ou menos como segue. Você aparece lá na rua com um carrão. O vizinho do 2º direito faz queixa, anónima, pois claro, que é o que está a dar: enriquecimento ilícito!
Havendo, em Portugal, uns milhões de vizinhos do 2º direito, haverá uns milhões de investigações totalmente inúteis.
Entretanto, os grandes passarões continuarão no maior dos à-vontades. Como a maioria deles já era rica, se aparecerem com o carrão, é normal. Sabem porquê? Porque não enriqueceram! O crime teria sido enriquecer! Ninguém fará queixa, toda a gente achará normal. Ilícito é você comprar o carro. Não é ter roubado para o comprar. Mesmo sem ter roubado nada a ninguém, você vai ser investigado, incomodado, chateado. Ninguém o manda ter vícios automobilísticos, não é?
Tudo de pernas ao ar.
Sem qualquer esperança, o IRRITADO espera que algo inesperado veja a projectar algum juízo na cabecinha pensadora dos deputados. Algo que os leve a não embarcar em mais esta manifestação de falsa moralidade e de demagogia, nesta pazada de areia nos olhos de cada um.
23.1.12
António Borges de Carvalho