ABUSOS E ILEGALIDADES
O processo de democratização da Espanha foi, como é sabido, uma manifestação de bom senso sem precedentes, sobretudo num povo que de brandos costumes pouco tem.
Se olharmos para trás, é quase difícil de acreditar como foi possível, passados quarenta anos do rebentar da guerra civil e da instalação da ditadura franquista, que o país se unisse à volta do Rei e que um processo democrático pacífico e consensual tivesse lugar e fosse seguido por uma era de normalidade política, com governos estáveis, alternância democrática e progresso social, sem graves problemas outros que não fossem, à direita, a efémera palhaçada do coronel Tejero – que teve resposta pronta e eficaz – e, à esquerda, o terrorismo basco – que levou décadas a erradicar, se é que está erradicado.
Tanto no que à ETA diz respeito, à esquerda, como no que aos GAL, talvez à direita, diz respeito, emergiu uma figura justiceira e eficaz, digna do maior apreço: a do juiz Garzón.
Porém, o juiz Garzón deve ter-se convencido que tinha ganho um estatuto ainda maior que aquele a que fazia jus, e começou a aplicar critérios mais pessoais que gerais. Olhou para o espelho e achou-se uma autoridade universal, com direito a perseguir quem perseguido merecesse ser, isto do alto do seu alto julgamento. Foi assim que mandou prender Pinochet, mas se esqueceu de mandar prender Fidel Castro, Kim Jong Il, Pol Pot e quejandos. Os critérios de esquerda sobrepuseram-se aos de Justiça e Equidade política.
Nesta matéria, o caso dos crimes do franquismo é emblemático.
Os espanhóis tiveram o admirável bom senso de, em 1977, amnistiar os crimes da guerra civil, o que foi um importantíssimo passo para a consolidação da democracia e para o apaziguamento social. É sabido que a guerra civil, em matéria de crimes, foi fértil. À direita e à esquerda cometeram-se atrocidades sem nome e sem número. Sarar tais feridas era fundamental para que os espanhóis se não entretivessem, durante décadas, a odiar-se uns aos outros à custa de um passado já longínquo. As feridas ou eram saradas ou esquecidas, ou postas na prateleira, sob pena de inquinar o futuro.
Por isso que, ao desenterrar os crimes de guerra do franquismo – para condenar quem? – e não o fazer aos crimes do outro lado, tenha sido um erro monumental do juiz Garzón. Primeiro, e principalmente, pelo que acima fica dito. Depois, por ser uma exumação vesga, tratando dos crimes de um lado sem tratar dos do outro. O juiz Garzón, irresponsavelmente, veio trazer à superfície ódios e querelas que, desejavelmente, estavam a bom recato nos livros de História. Erro fatal, imperdoável. Além disso, ilegal, já que a lei de amnistia está em vigor.
Tão convencido estava da sua intocável autoridade, coisa que na sua cabeça deve estar acima da lei, que, noutro processo, decidiu pôr em escuta conversas de arguidos com advogados, coisa talvez própria de ditaduras mais ou menos sanguinárias, mas absolutamente inaceitável, e criminoso, em termos jurídicos e civilizacionais.
Garzón foi condenado por isto, e sê-lo-á por aquilo. Não é tolerável, em democracia alguma, que os juízes, não gostando de uma lei, a ponham de lado e actuem como se não existissem ou como se a lei fossem eles*.
Pelo menos em parte, o mal que Garzón fez à Espanha no caso dos crimes de guerra, está feito. A cizânia foi lançada à terra e arrisca-se a dar indesejáveis frutos.
Não se trata de “perdoar” os crimes cometidos, sequer de os esquecer, trata-se de impedir que os ódios que os motivaram voltem a desgraçar a vida do país.
11.2.12
António Borges de Carvalho
*O que é, aliás, intenção declarada e desejo dos magistrados portugueses, como ficou claramente expresso na tenebrosa reunião de sindicatos que, aqui há tempos, houve nos Açores.