PRESIDÊNCIA E PRESIDENTE
Durante a I República nunca houve sufrágio universal para a eleição do Presidente.
Durante a II República passou a haver, mas, depois do cagaço que o Delgado pregou ao Estado Novo, voltou-se ao “Colégio Eleitoral”, desta vez cuidadosamente escolhido.
Veio a III República. Apesar de maioritariamente admiradores da Primeira, os da Terceira decidiram que, para se distinguir da Segunda, os Presidentes passariam a ser eleitos por sufrágio popular.
Para justificar a decisão, empurrados pela vertente castrense do poder da época, os constituintes de 76 puseram o governo a depender do Presidente. A coisa correu mal. Pessimamente. Daí que os constituintes de 82 tivessem parlamentarizado o semi-presidencialismo nacional e pusessem o governo a depender o parlamento. Esqueceram-se de fazer o mais importante, que seria, já que o Presidente perdia o mais importante dos seus poderes, alterar o sistema eleitoral e fazer como fazem todas as democracias ocidentais – eleger o Presidente no Parlamento, criar uma câmara alta, etc. A França é excepção, mas o sistema francês é um semi-presidencialismo presidencialista, quase à americana.
Assim nasceu o sistema político em que vivemos. O Presidente não tem poder, mas tem poder, o Presidente não pode, mas pode. Não é por acaso que, em todas as campanhas presidenciais se discute quais são os tais não-poderes ou poderes. Daí, uma série de disparates e de invenções: dupla legitimidade, cooperação estratégica, magistratura de influência, presidências “abertas”, presidências “fechadas”… cada um inventa o que lhe dá na gana, à procura de “espaço” que ninguém sabe se tem ou se deixa de ter.
Da oposição presidencial (Soares) ao golpe de Estado (Sampaio) e aos olhos fechados (Cavaco), tem valido tudo. Tudo, menos lógica política, menos funcionamento do sistema, menos estabilidade, menos prestígio das instituições, menos banal inteligência, mais egoísmo protagonista dos titulares, mais sacrifício dos interesses das pessoas a favor das conveniências eleitorais das “personalidades”.
A Presidência, numa palavra, não passa de uma infeliz palhaçada política. Há alturas, muitas, em que o Presidente, na sua ânsia de afirmação, parece, ou mais que parece, outra coisa não representar que não seja a si mesmo.
Não se sabe onde é que o Doutor Cavaco Silva foi buscar a obrigação do governo de informação prévia ao Presidente sobre tudo e mais alguma coisa. A que artigo da Constituição terá ido buscar este “poder”?
Não, não estou a defender o senhor Pinto de Sousa, que tem todos os defeitos que o Doutor Cavaco Silva lhe imputa e muitos, muitos mais e mais graves. Estou a dizer que a tal informação prévia pode ser uma atitude de cortesia, mas não é um imperativo constitucional.
Por outro lado, bem pode o Presidente clamar que o seu entendimento da Constituição lhe não permite dissolver a Assembleia quando não gosta do governo, ao contrário do que entendia o golpista Sampaio. Cavaco terá razão, mas tal não justifica que tenha deixado, sem um queixume, sem uma crítica, sem um alerta nacional, o tal Sousa e a sua horrenda camarilha governar o país num mar de asneiras, de escândalos, de rabos-de-palha, de inexorável caminho para a ruína. Vir agora assacar ao tenebroso Pinto de Sousa os defeitos que toda a gente conhece, é o mesmo que condenar-se a si próprio por tê-los aguentado durante seis anos, caladinho como um rato. Tarde piou, e mal.
Bem pode o Presidente Cavaco Silva queixar-se de quem o acusa de ter sacrificado os interesses de Portugal e dos portugueses à sua reeleição. Ninguém acredita, porque é essa a verdade objectiva.
O regime não funciona a contento, porque não pode funcionar a contento. O auto-culto da personalidade, as legitimidades híbridas e as confusões quanto ao que a cada um compete jamais deram bom resultado.
10.3.12
António Borges de Carvalho