O MILAGRE DAS BUFAS
Nos idos das monarquias bárbaras, reinou sobre os portugodos Sua Majestade Socrarrico, filho e sucessor de Guterrico, o Doce. Os inimigos tinham-lhe posto o infamante cognome de "O Canudo".
Sua esposa, a rainha Unilde, era conhecida pela forma insidiosa como conspirava pelos corredores do palácio, pelas esplanadas das barbacãs, pelos frondosos jardins das áleas senhoriais. Em dourado escabelo sentada, entre aias e cavaleiros, punha em causa, com confusões e inverdades, a legitimidade que a Santa Sé havia, em boa hora, reconhecido ao monarca.
Dona Unilde tinha-se aliado a ferozes inimigos do seu augusto esposo, os quais, capitaneados pelo tenebroso Fernandico, serventuário de senhores das setentrionais embocaduras durienses, propagavam aleivosias e acusavam Sua Majestade de faltar aos seus deveres de bom cristão, usando a arma da mentira e da falsidade no que aos seus nobres pergaminhos respeito dizia.
Socrarrico andava perturbado, não lograva tempo para se ocupar das ingentes tarefas da governação dos seus senhorios, não conseguia reunir os seus fiéis, e via, cada vez mais, a desconfiança e a insídia a tomar conta dos ingénuos espíritos dos seus vassalos. Mandou emissários ao Fernandico e a seus sequazes, em demanda de respeito e silêncio. Não resultou. A resposta vinha em novos ataques, os mais deles inspirados por Dona Unilde. Chegou Sua majestade a deslocar-se, qual arauto, à praça pública, para denunciar as maquinações de seus algozes. Nada. Ninguém cria nas suas esclarecidas palavras.
Um dia, num alarde de insidiosa malevolência, Dona Unilde mandou que uma sua açafata anunciasse aos quatro ventos que, nas vésperas seguintes, a rainha viria, em pessoa, presentear os súbditos de Sua Majestade com bombardas a utilizar para o seu derrube.
Dom Socarrico, o Canudo, entrou em possessão, não demoníaca, por certo, mas de justa e indignada surpreza. Unilde, a traidora, viria armar o povo, a poder de bombardas, contra a sua augusta autoridade! Emissários, embaixadores, sátrapas, partiram dos reais paços para as barbacãs da senhora. Que missão levavam, ao certo, não se sabe. Mas conseguiram! A aprazada bombardástica distribuição foi adiada para outra véspera. E, na nova data, estando Unilde reclinada em seu trono, diante da turba-multa, eis que surge, tonitruante, Socrarico:
- Oh! Miserável senhora! Infiel! Ingrata! Mulher sem alma! Mostrai-me, senão vos mato, as bombardas com que me ameaçais!
Dona Unilde, para surpreza de todos, ergue-se do seu dourado trono e, num gesto grácil, levanta a gentil anca. As saias, as rendas, os brocados da nobre veste, ondearam como que impelidos por uma leve brisa.
- São bufas, senhor, e não bombardas!
E, do real trazeiro, ligeiras e suaves brisas se soltaram, enchendo o ar de suave olor.
Recuaram os aleivosos. Sua Majestade respirou de alívio. Estava salva a sua honra, e a da pátria com ela.
Sorriram os emissários, os embaixadores, os sátrapas. Tinham conseguido guardar Sua Majestade.
Milagre? Talvez não. Passariam séculos até que, no tempo de Dom Dinis, um milagre viesse a ter lugar. Com rosas, que não com bufas.
ABC, Cronista do Reino