ANDAR PARA TRÁS
O Carlos, ciente da oportunidade, tratou de cavalgar a onda. Como nos tempos do camarada Cunhal, arranjou maneira de reunir sob a sua batuta os “trabalhadores”, os “patriotas”, “os católicos”, os “portugueses sem partido”, os “democratas”, etc.. Todos “unidos”, “o povo unido jamais será vencido”, bla, bla, bla.
A confessa intenção, com Cunhal, era evitar a todo o custo a implantação de uma democracia “burguesa” e erguer, na terra queimada, uma “democracia” “popular” à imagem soviética. Assim, pôs na rua hordas de trolhas e quejandos, que não percebiam nada do estavam a fazer. Tão só, na sua ignorância, davam largas a ódios baixinhos e sem sentido.
Cunhal não acabou por não vencer na rua. Mas criou uma onda que invadiu toda a política, que fez os partidos inflectir de tal forma que acabaram por embarcar, de uma forma ou de outra, na demagogia socialista de que é fruto a chamada “Constituição de República”, prolixa condensação de normas ideologicamente geradas, de imaginários direitos e, é bom não esquecer, desta coisa irrealista, paranóica e abstrusa que é o semi-presidencialismo à portuguesa.
É esse “programa constitucional” a origem primeira dos males endémicos da III República. Politicamente, o aborto semi-presidencial que confunde e anquilosa. Economicamente, um capitalismo socialista que misturou, mesmo quando queria fazer o contrário, a economia com a política, tirando ao Estado a capacidade de controlar o sistema económico – teria que controlar-se a si próprio!, gerou a evidente promiscuidade entre o capital privado e o Estado, com as desgraçadas consequências a que assistimos, deu asas a uma burocracia gigantesca, insuportável e paralisante, e a uma justiça cuja evidente degradação deriva directamente dos retorcidos conceitos constitucionais de independência e auto-gestão.
O caminho do regime para a exaustão não foi sentido, nem pelas gentes nem pelos políticos. A não ser quando já pouco havia a fazer.
De repente, os resultados directos e indirectos da filosofia do regime cairam-nos em cima.
Para além de tudo - dívida, défice, etc. - desgraça-nos a mentalidade que se nos meteu nas veias, cheia de “direitos” tortos, de oportunismos legais e oficiais, do convencimento que tudo nos é devido e nada devemos.
É este o nosso drama. É este o drama que o Carlos explora, cavalgando a onda do descontentamento e conseguindo apoderar-se de uma coisa que foi espontânea, ainda que errada e ineficaz: a manifestação do dia 15.
Desta vez o Carlos, vendo a mesma janela de oportunidade que Cunhal vira há trinta e tal anos, pegou no que era genuino e enquadrou-o. Como as “massas” que tem às suas directas ordens já não faziam impressão a ninguém, tratou de chamar as demais à rua, já que para tal se tinham "preparado": os mesmos que o Cunhal no seu tempo “convocava”. Carlos tratou do discurso, da organização, dos autocarros, das pancartas. Ameaçou-nos a todos (“se o governo não ouve a bem ouve a mal”), tomou conta da multidão. É de se lhe tirar o chapéu.
Em resumo, um país que, como os saídos da tirania soviética, teria tido, e teria agora outra vez, oportunidade para avançar – como todos eles avançam – para formas mais evoluídas de filosofia de base, parece, pela mão dos Carlos da nossa praça, querer voltar a um passado tão perigoso quanto repugnante.
Eles não passarão. Mas o que tal nos vai custar!
30.9.12
António Borges de Carvalho
PS. A propósito do “correr com a Troica”, e coisas do estilo, cito:
É altura de começar a discutir o preço que teriam para nós tais alternativas. Estou cansado da conversa sobre os “cortes” por parte de quem, na verdade, não quer “cortes” nenhuns e tem como único sonho encontrar quem nos pague as contas, chamando a isso “solidariedade”.
José Manuel Fernandes, “Público”