DA MORTE DO INDIVÍDUO
Não há nada pior que um call-center, leia-se, um call-center à portuguesa.
Chama-se àquilo “atendimento personalizado”, isto é, atendimento em que a menina ou o menino começam a conversa por dizer “Vanessa Cláudia” ou “Pancrácio Calhordas”.
Há tempos, para resolver com a TV Cabo um problema técnico, tomei nota dos nomes de dezanove Vanessas e dez Pancrácios. Ouvi, pelo menos, duas horas e meia de intragável música, repeti vinte e nove vezes, a solicitação de outras tantas Vanessas e Pancrácios, o nome, a morada, o número de cliente, o número de contribuinte e mais não sei quê, na inefável certeza que nenhuma das novas Vanessas e dos novos Pancrácios fazia a menor ideia da história que eu já tinha contado às Vanessas e aos Pancrácios precedentes.
O resultado desta tão agradável odisseia foi o esperado: o problema não se resolveu. Tomei então a digna atitude de escrever a Sua Excelência o Presidente do Conselho de Administração da TV Cabo, contando o sucedido e rescindindo o contrato. O resultado foi o que se esperava: Sua Excelência não respondeu à minha carta. Em substituição da inexistente resposta, a distinta organização mandou-me uma missiva chapa 4 a dizer que tinha quinze dias para enviar à TV Cabo os materiais em meu poder, sob pena de ter que os pagar a preços completamente absurdos.
Este é só um pequeno exemplo do entendimento português do que é um call center e do seu funcionamento. As empresas, públicas ou privadas (desgraçadamente para as minhas convicções liberais, as privadas não são melhores que as públicas), desde que se apanhem num negócio onde haja muitos clientes, dão-se ao luxo de tratar mal toda a gente, cientes de que, se um lhes der com os pés, haverá sempre uns milhares de outros prontos a ser maltratados.
Se um tipo tiver a triste ideia de recorrer às “entidades” que, supostamente, o defendem, mete-se noutra do mesmo estilo. A Deco responde que só trabalha para sócios, sendo os sócios da Deco aqueles que respondem a umas investidas comerciais em que os tipos prometem duas esferográficas e um dicionário trilingue a quem se filiar, como se fossem o Readears’ ou a Moviflor. O Instituto do Consumidor responde, invariavelmente, ou que a reclamação é improcedente ou que não tem competência para tratar do assunto, remetendo para terceiros. O Provedor de Justiça tem o estranho hábito de marimbar nestes assuntos.
A última coisa que deve passar pela cabeça do cidadão, em caso de ser vítima de maus-tratos por de um call center(e não só), é queixar-se à Justiça. Se tiver a sorte de a sua queixa ser considerada procedente, verá o assunto resolvido uns vinte anos depois, dada a produtividade das instituições. O mais provável é ser ressarcido no cemitério.
Se alguém quiser espernear com alguma eficácia, a solução será fundar um “movimento de cidadania”, arranjar uns milhares de capangas, vir para a rua aos gritos, fazer uma manifestação à porta do ex-engenheiro, arranjar uns jornalistas que se prestem à coisa, enfim, ter uma atitude de “democracia” participativa. Ou actua em grupo, ou faz um escarcéu dos diabos, ou não tem hipóteses de resolver seja que problema for.
Malhas que o socialismo tece. A pessoa, o indivíduo, o cidadão, não interessa a ninguém, muito menos à TV Cabo, à agência do BES da Av. de Berna, à companhia das águas, à PT, ou seja, a toda a série de colossos que dominam a nossa vida e que se comprazem a tornar o diálogo impossível para aqueles que não têm meios para os prejudicar minimamente. Que interessa um idiota que se zanga, se há por aí milhões que pagam e não bufam?
É nisto que vivemos. Segundo a filosofia da modernidade, filha do socialismo, a sociedade não é constituída por pessoas, mas por grupos de interesses. E, se os interesses de cada um não se integram num grupo suficientemente ameaçador, cada um não interessa a ninguém.
Se entrássemos num caminho minimamente decente, em duas ou três gerações talvez o problema se resolvesse. Mas este é um túnel sem luz lá ao fundo.
António Borges de Carvalho