COISAS DA HISTÓRIA
Talvez o mais importante trunfo político da I República, na sua guerra suja contra a Monarquia Constitucional, tenha sido o Império. Com a derrota diplomática sofrida na Conferência de Berlim, a perda do enorme território entre Angola e Moçambique e o ultimato inglês, a moral da Nação, até então elevada com os feitos dos exploradores africanos, sofreu um rude golpe, e a Monarquia com ele. O Império fazia há séculos parte da chamada auto-estima dos portugueses. Por isso, os republicanos atiraram para as costas do regime a fraqueza que os acontecimentos demonstravam, exploraram ad nauseam a alegada falta de patriotismo do Rei, capitalizaram a vergonha da Nação. Daí, “A Portuguesa”, a exaltação dos valores históricos, a defesa acrisolada do Império, razão de ser da Pátria que a Monarquia não tinha sabido defender, a subserviência em relação aos ingleses, a “traição à Pátria”, tudo politicamente explorado e potenciado pelos republicanos. Não seria fácil, por esse país fora, “vender” a populações com valores estáveis, agarradas a um viver habitual sedimentado, ideias que, boas ou más, pouco ou nada lhes diziam. Pelo contrário, os riscos que o Império corria calavam fundo no orgulho de cada um. O Império, a sua permanência e defesa, a sua “eternidade”, foram parte integrante do ideal republicano e da sua propaganda.
A II República pôs de lado tanto o sistema da primeira como o da Monarquia Constitucional, mas, no que ao Império se refere, deu continuidade e reforçou os ideais do regime anterior. Convertidas em colónias por Salazar, via “Acto Colonial”, as províncias ultramarinas depressa voltaram à sua designação anterior.
Os tempos mudaram. Os herdeiros da I República vieram – fruto dos “ventos da História” – a abjurar dos ideais dos seus maiores e a adoptar como ideal o novo movimento dito de libertação dos territórios, de novo coloniais. O que para uns tinha sido honra e glória, passou, na opinião dos seus “filhos”, a vergonha e opróbrio.
O Estado Novo, por seu lado, não percebeu as mudanças que sabiamente devia “controlar” e, apesar de para tal ter tido tempo e oportunidades várias, apesar do esforço nacional das guerras ultramarinas (hoje “coloniais”), insistiu nos ideais da I República e enquistou na fórmula dela, sem cuidar que, como tal, tal fórmula se tinha tornado insustentável e indefensável. Pagou-o uma geração inteira, pagou-o o sacrifício de milhões de homens. Pagaram-no os portugueses que se viram privados de tudo e que se exilaram num país europeu que não era já a sua terra de origem. Pagaram-no os africanos, com milhões de inocentes, vítmas de ideologias malditas e de lutas de poderes tribais, de senhores da guerra, de interesses externos, de exércitos estrangeiros que nada tinham a ver com as suas vidas. Mais de quarenta anos de guerra, os primeiros treze relativamente “suaves”- até 74, os seguintes da mais sanguinária violência.
Dir-se-á que isto são histórias passadas, histórias que às novas gerações já nada dizem. Talvez seja assim. Facto é, porém, que estas histórias, ou esta História, são sistematicamente postas em causa pelo novo politicamente correcto, que consiste em escarafunchar a História à procura de tudo o que possa arruinar o orgulho de ser português. O que era contado, quiçá com entusiásticos exageros pelas duas primeiras repúblicas, é lançado na terceira para os arquivos da desonra, com exageros ainda maiores. Parece que houve um massacre em Moçambique. Admitamos que sim. Tal história, completamente expurgada do contexto em que se terá dado, é contada e recontada vezes sem conta, como se fosse coisa paradigmática e exemplo acabado do que foram as campanhas ultramarinas. Uma História isenta diria que o acontecido foi uma excepção numa guerra muito mais marcada por exemplos de convivência e de humanidade que por massacres. Parece que houve cabeças cortadas a mortos. Admitamos que sim. A história é contada, recontada e tornada a contar, como se fosse verdade que os portugueses andassem a cortar cabeças a mortos por tudo o que era sítio. Com eventuais verdades, faz-se da História uma colossal mentira. Agora, apareceu nos jornais um ”estudo” de uma senhora, a provar que tudo o que a Monarquia Constitucional e as duas primeiras repúblicas diziam acerca do Império, não passava de mentira, de propaganda, de areia nos olhos do povo, uma anedota sem qualquer relação com a realidade.
O IRRITADO, quando pensa nos “historiadores”, nos “jornalistas de investigação”, etc. – salvem-se raríssimas excepções - e na coorte de socialistas e apaniguados que tratam destas matérias, sente-se na União Soviética, terra em que a História era contada segundo as conveniências do partido. Só que, hoje e em Portugal, nada justifica a aldrabice monumental com que a História é contada às pessoas em parangonas de jornal. Para quê? O que quer esta gente destruir? Que gozo lhe dá “aprofundar” a História com intenção masoquista ou ideológica? Com que direito se generaliza o que não é generalizável?
Lembro-me de, em São Tomé, ter passado os olhos por um livro de “história”, oferecido pelos cubanos ao sistema de ensino local, em que se dizia, mais ou menos assim, que a humanidade tinha conhecido uma idade de trevas, e que só tinha visto a verdadeira luz no dia em que Lenine desembarcou do comboio em São Petersburgo.
É isso o que querem?
29.12.12
António Borges de Carvalho