CIVILIZAÇÃO CANINA
Da sua janela, o IRRITADO vê uma zona relvada, jardim e árvores - tristes árvores que nunca foram tratadas, nem podadas, nem guiadas, nem coisa nenhuma. Mas o sítio é agradável. É? Podia ser.
Depois de uns tempos de seca, vinda a primeira chuva, sente-se o cheirinho a terra molhada e a ervinha fresca. Sente-se? Nem por isso.
As criancinhas do bairro brincam, rebolam-se na relva, chilreiam... Brincam? Rebolam-se? Chilreiam? Que ideia!
É agradável passear pelas ruas do jardim. Agradável? Talvez fosse.
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Quando vem a primeira chuva, a relva cheira... a mijo de cão.
As criancinhas não podem brincar na relva, porque não se brinca em cima de cagalhões.
Para passear nas ruas do jardim é preciso ir de olhos bem baixos, saltitando por entre a trampa para não chegar a casa a deitar eflúvios de caca pelas solas dos sapatos.
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Olho as verdes áleas. Uma senhora de certa idade, bem posta, oxigeneda, de bota alta e casaco de coiro, anda atrás de um cão preso a uma arreata dourada. De vez em quando, o bicho pára. Urina. Mais adiante, agacha-se e borra-se todo ante o desvelado olhar da senhora. Lindo!
Mais longe, um tipo gordo, com idade para ter juízo, arrasta-se a reboque de um bulldog, ou coisa do género. O bulldog esmera-se em ciclópica cagadela. Depois rega as ervinhas com o produto líquido de uma cuidada alimentação.
Uma menina, toda fataça, mostra o escuro umbigo no centro da faixa de gaja. Liberta um lulu que, feliz, saltita na relva. Alça a perna ao pé do banco da menina e esvai-se em líquidos. Depois, lá vai, e, no meio de um verde salpicado por doces florinhas, deposita o intestinal produto.
São às dezenas as senhoras, os gordos, as meninas, os canídeos, de manhã, à terde, à noite. É a civilização lisboeta no auge da sua qualidade.
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Contam os jornais que um arraçado qualquer deu cabo do canastro a uma velhinha. Outro banqueteou-se com um bébé. Vêm as estatístisticas. Nos últimos anos, umas dezenas de mortos e feridos pelas sequiosas mandíbulas de inúmeros animais de estimação. Uma veterinária resolveu mandar assassinar o bicho que comeu o bébé. Quinze mil boas almas protestam nas redes sociais. Coitado do animalzinho! A culpa foi do bébé, que não tinha nada que se meter com o cão, ainda por cima às escuras. Providência cautelar! Salve-se a vida ao doce mamífero!
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Assim vai o mundo. A câmara municipal acha muito bem. O governo não se pronuncia. Os deputados têm medo de ser acusados de inhumanidade, ou de incaninidade. A polícia tem mais que fazer. A associação “Animal”, comovida, refocila de justa alegria. A maioria das pessoas não gosta do sistema, mas alinha com os medos dos deputados. Entretanto, as criancinhas, ou não brincam na relva, ou brincam num mar de caca. As velhinhas são comidas. Mas a verdade correcta ganha. Não é o que importa?
18.1.13
António Borges de Carvalho