LÍNGUA DE TRAPOS
Quando foi lançado o primeiro “Campeonato Nacional de Língua Portuguesa”, iniciativa, em si, interessante, tive ocasião de escrever ao ilustre director do “Expresso”, Arquitecto Saraiva (hoje chefe do SOLcrates), a reclamar contra os inúmeros pontapés na gramática que, mesmo antes de o concurso começar, já eram dados nos artigos que o propagandeavam.
A coisa teve o destino normal, isto é, os pontapés na gramática continuaram, o concurso fez-se, o ilustre arquitecto nunca me respondeu, e eu, como é normal, borrifei no assunto.
Este ano, já com novo director, o “Expresso” reincidiu. Li as primeiras informações sobre a nova edição do concurso. Concluí que o nível era o mesmo, que os pontapés continuavam e que, simplesmente, era tempo perdido tentar protestar ou chatear-me com o assunto.
O concurso lá seguiu os seus trâmites, vindo a encerrar sob a habitual batuta da senhora dona Bárbara Guimarães, estranha quão plausível inflorescência da nossa “cultura” oficial. Mantive a minha atitude de distanciamento, como é natural, não fosse ter que me irritar outra vez.
Agora, vêm os concorrentes dizer que os catedráticos do concurso acham que tecelã não é o feminino de tecelão, que exuberante se escreve com s, que a dona Bárbara não sabe pronunciar correctamente certas palavras, que o sistema electrónico para as respostas não funcionava em condições, etc.
Fiquei todo contente por ver que, finalmente, alguém percebia que a coisa estava entregue a um bando de ignorantes. Fiquei tristíssimo por ver que nem alegados especialistas de alta craveira sabem já como se fala português.
Um conselho ao “Expresso”: deixe-se de concursos destes, e trate de rever melhor as suas edições semanais, para não irritar umas dúzias de malucos que andam por aí e que ainda se preocupam com a língua que os professores de português do tempo do fascismo lhes ensinaram.
Há dias, por indesculpável preguiça intelectual, comprei uma tradução da obra de John Le Carré The Song of the Mission. É que John Le Carré, em inglês, não é fácil de ler.
E em português? Garanto que é muito pior. Admito que o tradutor saiba muito de inglês, mais do que eu, com certeza. Mas de português, meus amigos, o homem, ou a mulher, não sabe patavina.
Logo nas primeiras páginas dou com a lindíssima palavra ansiões. Lindo. Depois, tropeço em infinitos impessoais na terceira pessoa do plural, em traduções literais sem sentido, em “adaptações” de conceitos completamente burras…
Ao chegar à página 20, para não estragar o fim de semana, peguei no belo livrinho e, possuído de incontida raiva, espetei com ele no caixote do lixo.
Amanhã, vou procurar a versão original.
A situação da língua portuguesa, no que às traduções se refere (e não só…) é desesperante. Não sei se, nas inúmeras faculdades que por aí há, entre tantos cursos, cursinhos e cursetes, muitos deles completamente absurdos, haverá algum que se proponha formar tradutores. Se não há, e caso seja possível ir buscar professores, ou ao estrangeiro ou ao cemitério, permito-me sugerir que o criem.
António Borges de Carvalho