UMA BELA MANHÃ
Como o IRRITADO só vê televisão depois do jantar, teve uma invejável manhã. Tudo à sua volta funcionava. O café da esquina, como todos os outros, estava em plena actividade, a esplanada cheia de povo, muito sol, uma ligeira brisa a minorar os efeitos da canícula.
Havia mais trânsito do que habitualmente. Sem problemas, porém, já que não havia autocarros. Os aviões, surpresa, troavam no ar. O centro comercial do bairro regurgitava de clientes. As lojas pareciam ter mais movimento, as pessoas estavam mais simpáticas, parece que se sentiam orgulhosas. O IRRITADO fez as sua compras no supermercado, na tabacaria, no sapateiro. Reinava a calma, por causa do calor, ou talvez não. O IRRITADO foi ao Jockey ver a abertura do campeonato nacional de iniciados. Bom espectáculo, e de borla! Na loja das tintas preparam-lhe um litro de tinta de água para a parede da sala.
Nada de anormal. Tudo a trabalhar, os que chegaram mais tarde, os que chegaram a horas e os que vieram depois.
Tudo? Não! Por exemplo, não houve correio, o que proporcionau ao IRRITADO a suprema delícia de não ter a inquietação que provoca abrir a caixa com medo de alguma carta das Finanças. É possível que, no Hospital de Santa Maria os doentes tivessem menos assistência que de costume. É possível que os caixotes ficassem a abarrotar de lixo em acelerada decomposição. É possível que, na repartição do Registo civil, não houvesse casamentos. Muita coisa má é possível, mas a manhã do IRRITADO foi excelente.
À noite, é certo e sabido, se abrir o aparelho, o IRRITADO será submergido em declarações do Carlos, do Jerónimo, do casalinho meia-leca, do oco e seus rapazes, em entrevistas a inúmeras personalidades, todas Estado-dependentes, a incensar a brilhante iniciativa de uma greve “geral” que o IRRITADO não sentiu, certamente por se tratar de cidadão de segunda, que já não contribui para a produção e nunca contribuiu para greves.
Doutas exposições atroarão os ares, produzidas por uma multidão de artistas que tecerão informadas opiniões sobre um dia de inesquecível triunfo das classes trabalhdoras, bla bla bla, puf puf puf.
E agora? Agora, mija na mão e deita fora. Ficou tudo na mesma. Se o governo é mau, continua mau. Se é bom, continua bom. E se antes pelo contrário, a mesma coisa, não é? Se o Carlos e os outros agitadores eram bons, continuam bons, se eram maus, maus ficaram.
Em resumo, para nosso descanso, todos ficaram contentes. O Carlos e os outros porque a greve teve uma adesão de 485%. Os artistas porque tiveram mais uma noite de opinação paga. O governo, porque poupou um jorna de salários. O IRRITADO, porque passou um dia tranquilo, sem sobressaltos. A vida, má ou boa, ficou como estava ontem e estará amanhã. Quem tem trabalho público fez greve e ficou todo ufano. Quem tem trabalho privado trabalhou como nos outros dias, ou teve boa desculpa para ficar em casa. Quem não tem trabalho, ou anda a desenrascar-se e não faz greve, ou não anda a desenrascar-se e, por definição, nem trabalha nem faz greve. Nas ruas, houve quem, comandado por mesnadas de especialistas assalariados, desfilasse com pundonor, como há décadas desfilava, com o mesmo pundonor comandado pela União Nacional. Nem há décadas nem agora os desfiles serviram para o que fosse. Mas fizeram-se. A “informação” gostou e, passada a romaria, todos foram, felizes, para casa.
Tudo como dantes, quartel em Abrantes.
27.6.13
António Borges de Carvalho