SENTIDO DA DIGNIDADE E DO RIDÍCULO
Calcule-se que os meritíssimos juízes da 4ª Vara do tribunal da Boa Hora encontraram “um rato em estado de decomposição num gabinete”. O referido cadáver estava escondido dentro de um cachecol “que se encontrava dobrado numa prateleira da mesa de um computador”.
Mais. Os mesmos meritíssimos juízes acham que, para além de haver ratos nas instalações, os autoclismos do Tribunal quase não funcionam, estando as instalações sanitárias, a partir das 14 horas (note-se a precisão da coisa), de tal maneira cheias de caca e de xixi que se tornam “praticamente inutilizáveis”.
O primeiro problema que esta extraordinária notícia põe é o de saber se o rato entrou no cachecol pelo seu pé, ou foi nele colocado por algum díscolo apostado pregar uma susto a algum incauto funcionário, algum meritíssimo juiz ou, simplesmente, ao dono do cachecol.
Na primeira hipótese, e uma vez que, nesta época do ano, não se usam cachecóis, haverá que pôr, muito seriamente, a questão de saber se o computador junto ao qual o rato foi expirar já não era utilizado desde o Inverno, ou se é de norma os funcionários utilizarem as secretárias para depósito de abafos, uma vez que a agonia do mamífero se processou sem que ninguém mexesse, durante longo tempo, no cachecol, o que implica graves problemas disciplinares (ausência injustificada do serviço, abandono de funções, etc.).
No caso de o rato lá ter sido posto por mão humana, o caso não é para menos. Gravíssimas suspeitas se levantam. Ou não há segurança no Tribunal e algum fundamentalista da anarquia penetrou nas instalações com a tenebrosa intenção de pôr ratos defuntos nos cachecóis que repousam dignamente sobre as secretárias, ou alguém, funcionário ou juiz, o fez, no propósito, ou de pôr em causa os sentimentos higiénicos dos seus pares, ou de chamar a atenção para os cachecóis esquecidos em cima das secretárias, ou ainda, o que é mais grave, de pôr a nu a ausência injustificada e prolongada do respectivo utilizador.
Matérias que, como é evidente, deviam ser objecto de imediata investigação e procedimento judicial.
O problema das retretes também não pode ser minimizado.
Numa primeira abordagem, é-se levado a pensar que os funcionários e juízes cagam demais, o que deve ser objecto de cuidados acrescidos no que respeita à sua alimentação. Uma vez que o problema se agudiza a partir das 14 horas, seria, por exemplo, de proibir os funcionários e magistrados de comer feijoada ao almoço.
Convenhamos que poderá haver outras causas para justificar a infeliz circunstância. Talvez se pudesse recorrer ao Instituto Nacional de Estatística. Esta instituição pública deve poder fornecer à 4ª Vara os dados necessários à resolução do problema: número de cus por cagadeira, ratios de produção de caca por cabeça, velocidade de propagação de eflúvios merdais, e outros elementos a usar na determinação do número e da qualidade de latrinas necessárias à 4ª Vara. Além disso, dados como os referentes à mão de obra especializada necessária à limpeza das ditas, à quantidade de piaçabas, etc., seriam utilíssimos para o encontro de uma solução condigna.
Enfim, aqui ficam algumas humildes sugestões do Irritado, destinadas a fornecer pistas para a resolução do ingente problema dos ratos mortos e do fedor da 4ª Vara.
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O Irritado não inventou esta história. Ela vem nos jornais. Os meritíssimos juízes da 4ª Vara queixaram-se do rato morto e do cheiro da caca à Direcção Geral de Saúde e ao Inspector Geral do Trabalho.
Não contentes com isso, chamaram os tipos da Lusa para lhes dar conta do feito. Os tipos da Lusa, como é sua função, espetaram com a coisa nos jornais.
Ou seja, os meritíssimos juízes não perderam só a noção do ridículo, perderam também a noção da sua dignidade de magistrados. E da nossa. É que devíamos ter o direito a poder acreditar que na dignidade deles.
António Borges de Carvalho