UMA JÓIA DE VEREADORA
Há para aí meia dúzia de anos, cheio de ilusões – a velhice não me tira a estúpida capacidade de me iludir – dei comigo investido no alto cargo de deputado à Assembleia Municipal de Lisboa.
As ditas ilusões, bem como as minhas convicções democráticas, levavam-me a pensar que, a partir dali, me seria possível fazer alguma coisa pela minha cidade. Vi-me metido num saco de gatos, numa coisa ineficaz, idiota, primitiva, movida pelos mais baixos sentimentos, de confrontação, de mesquinhas mal-querenças, de partidarite aguda.
Ao ver a cara de uma senhora, de seu nome Ana Sara Brito, nos cartazes em que o Costa apresenta a plêiade de luminárias que quer levar para a Câmara, lembrei-me de dois episódios que talvez possam levar um sorriso à boca dos tristes leitores do Irritado.
Aí vão eles:
A minha primeira iniciativa como deputado (independente, nas listas do PSD) foi pôr em letra de forma a minha fúria contra o horroroso marsápio que mija sobre a cidade no alto do Parque Eduardo VII. A título de “recomendação” – figura regimental à disposição dos deputados, resolvi pedir à Câmara que “removesse e levasse a vazadouro o falo lítico urinante…” em questão. Tendo-me aconselhado com um colega – hoje grande perorante em diversos fora – acabei por retirar a proposta de remoção a vazadouro, que, na opinião do meu amigo, constituiria uma inútil provocação. Ficou só a remoção, sem menção do desejado destino.
Chegada a altura própria, subi ao pódio e fiz a minha oração, pleiteando a favor da dignidade da cidade, da fealdade do coiso, da nobreza do local por ele desfeado, da desproporção dos pedregulhos em relação ao espaço, e propondo uma espécie de concurso de ideias para saber o que lá se havia de pôr, problema que nem no tempo do chamado fascismo houve quem tivesse coragem para resolver.
Foi uma bronca dos diabos. A esquerda em peso ergueu-se contra mim. Que o que eu queria era acabar com o 25 de Abril, que o autor do mamarracho era um tipo indiscutível, um luminar das nossas artes, e pá-tá-ti e pá-tá-tá.
Fiquei banzo. Como é que se argumenta contra uma coisa destas? Nunca me tinha passado pela cabeça que um piço de ciclópicas dimensões a urinar de baixo para cima, cercado de informes calhaus, tivesse alguma coisa a ver com o dito 25. Quando chegou a vez da dona Ana Sara Brito, a coisa atingiu as raias da loucura. Que um símbolo fálico é um sinal de liberdade, que o fascismo se oporia àquilo e que, por isso, era uma coisa daquelas que devia figurar como indelével testemunho da libertação dos povos… e por aí fora.
Depois da intervenção da senhora, caí na asneira de dizer que a segunda metade do século vinte tinha assistido à libertação e dignificação da mulher, e que dificilmente compreendia que um falo pudesse ser sinal disso, antes pelo contrário. A senhora perorou contra a bestialidade da minha posição, a esquerda aplaudiu-a freneticamente, e a minha humilde proposta foi liminarmente chumbada pela maioria de esquerda à época existente*.
Fiquei, pois, a conhecer a dona Ana Sara Brito e a sua admiração pelas virtualidades libertadoras dos símblos fálicos. Tal convicção, porém, viria a ser contrariada pelos acontecimentos. Um belo dia, levantou-se na Assembleia uma questão importantíssima. Tratava-se de uma anafada cidadã que se queixava da Câmara por esta lhe ter recusado uma casinha nova para viver. Ao princípio, não percebi bem do que se tratava. Veio dona Ana Sara Brito, empolgada por justa indignação, esclarecer as massas sobre o assunto. Assim: os pais da anafada criatura foram contemplados com uma casa da Câmara, em substituição do pardieiro onde, julgo, viveriam. A filha, como é normal, iria viver com os pais. Mas, ó desgraça, a rapariga era lésbica e queria levar com ela a namorada. Os pais puzeram os pés à parede. Reaccionários, declararam que não queriam porcarias lá em casa e recusaram abrigo ao casalinho. A fulana, com o apoio da dona Ana Sara Brito, resolveu reclamar da Câmara uma casinha nova para ela e para a esposa, já que era despejada de onde vivia e não tinha onde ir morar, dada a jurássica posição dos papás. Dona Ana Sara Brito não só fez um discurso inflamadíssimo defendendo o “direito inalienável” à habitação que assistia à anafada, e a estritíssima obrigação da Câmara de lho garantir sem cuidar do inaceitável dictat do papá e da mamã.
Dias depois, dona Ana Sara Brito encabeçava uma manifestação à porta da Assembleia, com cartazes alusivos aos direitos das lésbicas em geral e da anafada em particular.
Num conjunto mais ou menos anodino de ilustres desconhecidos, Costa apresenta, à sua esquerda, dona Ana Sara Brito. A senhora, que deve caminhar freneticamente para os setenta (sim, não se trata de nenhuma miúda), vai ser eleita vereadora em Lisboa.
Aqui têm os meus leitores mais uma boa razão para votar no Costa.
António Borges de Carvalho
* Hoje a maioria é de direita, mas não sei se, sob a direcção da dona Paula da Cruz, não aconteceria o mesmo à minha proposta. Tenho até legítimas dúvidas de que pudesse ser admitida pela mesa.