JOÃO CAMOSSA
O João foi um dos homens mais inteligentes que conheci. Dos mais cultos. Dos mais sábios.
Não tinha, nem pela humanidade nem por si próprio, uma consideração por aí além. Abominava o doutor Oliveira Salazar e o socialismo, achava que as pessoas se deviam agrupar em pequenos núcleos, já que, nos grandes, o diálogo era impossível. A si próprio atribuía, como ideologia, o “anarco-comunalismo”, coisa mirífica onde as pessoas se deviam dar bem porque se ignorariam quanto pudessem, e onde o Estado se tornaria (quase) desnecessário. Talvez por isso era monárquico, concebida a monarquia como um sistema em que o chefe era próximo porque longínquo, doce, estimado, não estava sujeito às dicussões dos fabricantes delas e só aparecia quando era indispensável, na certeza de que o ideal era que não precisasse de aparecer.
O João leu coisas que ninguém mais leu, sabia coisas que a mais ninguém era dado saber, pensava coisas que ninguém mais pensava.
Por baixo das anedotas que a seu respeito se contavam, talvez por ele incentivadas, escondia-se um ser pensante, quase genial, que raciocinava a galope e chegava a conclusãos que causavam estranheza, inveja, até repulsa à chã farronca do comum dos mortais.
Fizeram troça dele, abandonaram-no – em boa verdade não sei se foi ele quem abandonou os demais – riram-se dele na rua, das suas barbas grisalhas, dos seus dentes estragados, da sua roupa ridícula. Pior, muitos dos que lhe eram próximos recusaram-lhe a admiração e o respeito que lhe eram devidos. Não, ele não se importava, estava acima disso tudo.
Um dia em que passou de advogado a réu num tribunal plenário do salazarismo, apresentou-se de toga no respectivo banco. O juiz insistiu em que a tirasse. Ele acabou por obedecer. Tirou a toga. Estava nu lá por baixo. Vestiu a toga outra vez, por ordem do juiz. Foi preso, mas não por isso.
Várias foram as mulheres que por ele se apaixonaram. Nunca quis nenhuma lá em casa. Só a cadela o recebia, sempre alegre e reconhecida, quando, altas horas, ele metia a chave à porta. E se fosse uma mulher? - justificava-se, com uma graça sempre inteligente, mesmo que informada por uma misantropia visceral.
Os seus escritos, que transportava em bolsos imensos, quase a arrastar pelo chão, a contestação de Bernstein e Marx, as críticas ao senhor Soares (Mário), como ele lhe chamava, as suas teses sobre a nacionalidade, os descobrimentos, o miguelismo, sei lá, tudo deve estar perdido. Deve-lhe ter caído dos tais bolsos, já rotos, vítimas da usura e do desleixo.
Há Homens que muito poderiam ter dado, ou deixado, ao seu semelhante. Assim não aconteceu com João Carlos Camossa de Saldanha, não porque não tivesse produzido, e muito, mas porque nunca teve intenção de fazer disso honra.
Acabou os seus dias abandonado por si próprio e por quase todos os que muito lhe deviam, mas “achado” por um Amigo, daqueles que se pensa que já não há. Dos poucos que nunca fizeram troça dele, nem acharam que a sua “originalidade” era um defeito, nem se penduraram na sua argúcia em benefício próprio.
Adeus, João, obrigado pelo que me ensinaste, obrigado por nunca me teres traído, obrigado pelo desprezo a que votaste tanto oportunismo e tanta porcaria que andou à tua volta. Aprendi muito contigo, sabes? Se calhar nunca to disse. Paciência, olha, não sei se valeria a pena, não sei se há muito que valha a pena, para além de poder olhar para o espelho e não sentir vergonha.
António Borges de Carvalho