VIGILÂNCIA CÓSTICA
À minha porta, quase todas as manhãs, depois das dez, surge uma rebrilhante viatura com dois imponentes agentes da autoridade. Encostam ao passeio, num local de estacionamento proibido, ocupando uma preciosa faixa de rodagem. Os dois senhores abrem as portas e materializam-se na via pública. Colocam os bivaques nas nobres cabeças. Depois, um abre a quinta porta. Outro, cuidadosamente, coloca um lap-top na prateleira da mala. Durante estes preparativos, surge um cowboy, alcandorado em potente motociclo. Põe a moto em cima do passeio, tira o capacete, coloca o bivaque no ínclito toutiço. Neste momento, outra viatura, que pára à esquina, despeja mais um senhor, também de bivaque. Postas assim as tropas em linha de batalha, o serviço começa. Consiste o mesmo em mandar parar os automobilistas e em passar revista a documentos, triângulos, casaquinhos amarelos, guias de remessa, e mais tudo o que possa falhar e dar lugar a prestimosas multas. Fazem-se investigações no lap-top, a fim de ver o que, sobre os suspeitos, consta nos arquivos da organização. Segue-se a digitalização da identidade dos prevaricadores, o devido registo dos malefícios causados à sociedade, e a contabilização das penas aplicadas.
E assim se passa uma calma e lucrativa manhã.
Nas barbas dos mesmos polícias há uma rua onde, todos os dias, se pratica o estacionamento em segunda fila. Mais adiante, dezenas de selvagens deixam os carros numa faixa de rodagem onde há sinais de estacionamento proibido, à porta de um parque de estacionamento subterrâneo e a cinquenta metros de outro, ao ar livre. Os distintos funcionários da EMEL nada fazem, nem a uns nem a outros, uma vez que estão fora da sua jurisdição. Dedicam-se tão só a, cuidadosamente, multar e rebocar os que estão bem estacionados mas sem dístico. Os agentes da autoridade, esses, ainda menos ligam a tais actividades. Aqui há dias, tive a ousadia de, humilde e contidamente, perguntar aos excelentíssimos agentes porque não ocupavam o seu tempo a incomodar quem, efectivamente, perturba a vida de terceiros, em vez de serem os próprios a dar o exemplo. Ao que me foi respondido, com a sobranceria própria do poder, primeiro, que não tinha nada com isso, segundo, que a “autoridade” estava no cumprimento de uma missão dedicada a carros em movimento e não a carros parados (mesmo que em segunda fila e/ou a perturbar o trânsito, pensei eu, mas tive medo de o dizer).
Assim vai o costismo em Lisboa. Nem o Santo António nos vale, já que a “autoridade” manda muito mais que o pobre do santinho.
António Borges de Carvalho