ATATÜRK MORREU
Tive vários amigos turcos. Um deles – teria hoje uns cem anos – inesquecível pela sua inteligência, bom humor e bom conselho. Halûk Bayulken de seu nome, foi quase tudo na hierarquia da Turquia laica: diplomata, embaixador em Londres e Washington, ministro da defesa e dos estrangeiros, Legião de Honra, Ordem do Império…
Guardava, com graça, um cartão de identidade em árabe otomano, que provava ter uns seiscentos anos de idade… na era de Maomé. Com o mesmo espírito, dizia que tinha, no Reino Unido, o direito a ser tratado por His Lordship e, na Turquia, por His Godship, já que o seu nome era o de um deus dos tempos anteriores ao Islão.
“Ataturquista” convicto, costumava explicar que, na sociedade turca, a democracia e a separação da religião e do Estado não eram coisas fáceis de manter. Por isso, Mutafá Kemal (Ataturk - pai da Turquia) tinha estabelecido constitucionalmente que competia às forças armadas a guarda última do regime e a sua opção ocidental e laica. O que, convenhamos, às vezes dificilmente justificava certas intervenções ditas “correctivas”. Costumava citar Jesus Cristo como o grande inventor da fórmula mágica “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. E se, para manter o princípio, fosse preciso um toque militar…
Para nós, isto parece estranho, até inaceitável. Mas, se pensarmos duas vezes, se olharmos com atenção o pulsar social sempre presente na cultura e nas mentalidades turcas, alguma compreensão teremos para com as ideias do meu amigo. Não tivemos nós um golpe militar a abrir caminho para a democracia?
Um longo percurso eleitoral levou Erdogan, à frente de um partido islamista tido por moderado, ao cume do Estado. Ajudado por um clima económico favorável, foi reforçando o seu poder ao mesmo tempo que restaurava o “chador” e dava privilégios clericais. De caminho, arrancou numa cavalgada de poderio, pôs em causa o poder judicial, “saneou” juízes, demitiu e substituiu as hierarquias militares, prendeu generais “suspeitos”, fechou jornais incómodos, alterou a Constituição, etc. Por outras palavras, serviu-se do apoio popular democrático para pôr no lixo a democracia, locupletando-se com o poder sem reconhecer limites de legitimidade.
O golpe militar falhado de anteontem, falsamente atribuído a um imã ultramoderado que vive nos EUA e cujo único “defeito” grave e “crime” visível é não ser partidário de Erdogan, foi talvez o último suspiro do regime fundado por Mustafá Kemal.
A julgar pelas declarações do ditador e pelas medidas já tomadas, a caça às bruxas está lançada, fala-se abertamente na aplicação da pena de morte, milhares de juízes foram presos ou impedidos de exercer, a razia nas forças armadas é infrene, as liberdades públicas acabaram, num nunca acabar de exercício do poder “democrático”.
O Ocidente em geral e a Europa em particular, terão que lidar com mais esta “primavera”. O que se segue é incerto e extremamente perigoso.
Pobre Bayulken, pobre Ataturk!
17.7.16