AVENTURAS DE UM PARLAPATÃO COM SORTE
A sorte de Soares coincidiu com a nossa num tempo curto, mas importante. Entregue o ultramar à URSS, de acordo com o chamado “pacto de Paris”, já não havia desculpa para Cunhal continuar incendiar as “massas”. O prometido, da parte de Soares, estava cumprido. Internamente, Cunhal tinha que cumprir também, com a especial ajudinha do parceiro, que o viria a considerar “indispensável à democracia”. Além disso, a fúria popular contra sovietização do país era de tal ordem, que se transformou no cavalo certo. Urgia montá-lo para não perder a corrida e não ser metido no saco em que a malta já tinha posto o camarada Álvaro.
Depois, a conquista do poder não foi difícil. Sem maiorias que se vissem, Soares fez as alianças que mais lhe convinham, ora com o CDS, ora com o PSD, ora, quando as coisas corriam mal, com o FMI. Jurou vingança contra Eanes, um chato intrometido.
Sá Carneiro foi o primeiro a fazer-lhe frente, a ele e aos diversos bandos de artistas que sempre povoaram o PSD. Houve o “interregno” da AD, que durou pouco, aliás como Sá Carneiro. O imperador voltou. Entretanto, houve que limpar a casa. Aos poucos, foi funcionando o cilindro: foi-se o Manuel Serra, foi-se o Salgado Zenha, foi-se o Rui Mateus, e mais uma data de gente foi abolida. Ai de quem lhe tocasse a fímbria das augustas vestes do nosso homem. Eanes que o diga. É certo que houve alguns, mais espertos ou mais resilientes, que se foram deixando ficar, Sampaio e Guterres, por exemplo. Ao tempo, Soares não conseguiu fazer-lhes a cama, mas ficou à espera de poder servir-se deles. Cavaco fê-la, mas durou pouco, já que Soares voltaria pela porta do cavalo do poder, sita em Belém, e dedicou a vida e o cargo a dar-lhe cabo do juízo, num entendimento assaz original, mas muito apreciado, da função do ocupante do palácio real.
E lá foi apoiar Sampaio, o chefe do ex-secretariado, odiosa organização. É assim que tem que ser. É preciso cavalgar os bons cavalos, os que podem ganhar, mesmo que se engula uns sapos pelo caminho. O tempo viria a demonstrar a razão que lhe assistia quando Sampaio veio a usar um poder que, segundo a antiga opinião do imperador, lhe não assistia. E muito bem, terá pensado, as coisas são o que são, dependendo do momento. Para correr com o “inimigo”, interpreta-se a Constituição de pernas para o ar. E muito bem. O que está certo é o que convém, o resto é conversa antidemocrática.
Mais tarde, por azar ou distracção sua, Cavaco por duas vezes o contrariou, indo parar a Belém. E ele, que nem sequer tinha apoiado o rapazola de Vilar de Maçada (o que é isso?), viu-se na contingência de o aturar. O tal rapazola veio a revelar-se uma chatice, cheiinho de rabos de palha e de esqueletos no armário. Paciência, se é dos nossos ou, pelo menos, não é dos deles, há que virar o bico ao prego e apoiá-lo.
Na idade provecta, já não há muito a fazer. Esgotadas as “razões”, fica a verve e as servis simpatias da “informação”. A luta continua, como diria o velho camarada Cunhal. Quem não é comigo é contra mim, ora essa! Já nada havendo no deserto do socialismo, agarremo-nos à retórica do Alegre, ex-amigo, ex-inimigo, amigo. Isto de democracia é coisa de amigos. Quem não for amigo é para cilindrar, os neoliberais (que tal coisa não são, como ele sabe) passam a fascistas, salazaristas (coisas que também nunca foram, como ele sabe), cambada, políticos, juízes, o que der jeito é para demolir, sendo certo que, para o camartelo da “informação”, o que vale é o que vende jornais e dá publicidade.
Apesar de tudo, ainda havia, no fundo de todos nós, alguma compreensão, até apreço, por certos feitos de um passado já distante. Agora, o que pode restar disso? Talvez alguma caridade para com um velho que, sem perder a tineta (única desculpa que podia ter) traz ao de cima a verdadeira face de um homem mau.
7.12.14
António Borges de Carvalho