CONTO NEGRO
Em Fortes Macucos de Cima há uma igreja com 500 metros quadrados, uma casa onde vive o padre Felismino, trasmontano de gema, com um anexo para o sacristão. 100 metros ao todo. O resort é complementado por um barracão destinado à sopa do Sidónio, e outro onde impera uma mesa de ping-pong. Ao todo, mais uns 150 metros. Do ponto de vista paisagístico, o complexo é complementado por um logradouro murado com uns 1.000 metros, a que se dá o nome de adro. Nele vicejam alguns pinheiros, três ciprestes e uma horta de nabos. A norte, estende-se a lonjura dos montes limitada pelo céu azul, a lembrar o destino das almas puras. A Sul, o cemitério, pejado de brancas campas. A oeste, uma fábrica de chouriços e uma pocilga mal cheirosa. A Leste, lá onde nasce o Sol, vê-se um bairro de casas abandonadas, vítimas da desertificação, do declínio populacional e das ratazanas.
Um dia, um desconhecido bem-posto, jovem licenciado em rendas de bilros, aborda o padre Felismino.
- Bom dia, meu filho. Em que posso ajudar-te?
- Sou inspector tributário - responde o homem, exibindo a identificação da República.
- Sê bem-vindo. Queres confessar-te? Marcar um matrimónio? Pedir a extrema-unção para alguma alma de partida?
- Nada disso. Venho a mando do governo marxisto-jacobino, a fim de pôr as coisas no são.
- ???
- Por ordem superior, o complexo que o senhor gere foi avaliado em três milhões oitocentos e vinte sete mil euros e quarenta e quatro cêntimos, sem contar com a majoração da paisagem, das condições edafo-climáticas da zona, da existência de espécies autóctones e de vários endemismos, assim como, naturalmente, das mais-valias que são características dos empreendimentos de natureza turística ou afins. Foram consideradas algumas menos valias, incluídas pela lei na fórmula de cálculo. Assim, a sua propriedade tem, feitas as contas, um valor fiscal final de quatro milhões trezentos e vinte sete mil euros e dois cêntimos.
- Mas…
- Não há mas nem meio mas. O cidadão responsável, que é vossemecê, uma vez que goza de benefícios camarários aprovados na Assembleia Municipal de 10 de Julho, tem desconto. Ora veja aqui no aipede. Em baixo, a negro: são dezoito mil oitocentos e quarenta e quatro euros por ano, que poderá pagar em três suaves prestações de cerca de seis mil euros…
- Eu não sei nada disso, nem tenho dinheiro para pagar, nem os cento e oitenta a quatro habitantes da paróquia me podem ajudar.
- Isso não interessa. Não paga, nacionaliza-se esta coisa toda, e pronto. Mas tem os seus direitos assegurados. Por exemplo, tem o direito de reclamar, desde que, como é evidente, pague primeiro, como acontece a qualquer cidadão. Dentro de mais ou menos um ano, a sua reclamação será, como é de lei, indeferida. Também pode dar a coisa à penhora, como garantia, o que contribuirá para agravar a despesa. Em alternativa, que não aconselho, poderá impugnar a colecta, o que, com os preços a que estão os advogados, sai caro e pode arrastar-se por vários anos nos tribunais, com variadíssimas despesas acrescidas.
- Mas…
- Já lhe disse. Não há mas nem meio mas. As coisas são como são. É o que manda o Estado de direito, no cumprimento dos mandamentos da moral republicana, socialista, laica e marxisto-jacobina.
- Ouvi dizer que a Igreja tem um acordo com o Estado…
- Tinha, meu caro, tinha. Agora quem manda é a geringonça, que não tem nada a ver com acordos assinados pelo Mário Soares, indivíduo que está completamente patareco e já não manda nada, está a perceber? Agora quem manda é a Catarina e o Jerónimo, sendo executor ao seu serviço um tal Costa, proveniente da ala jacobina, está a perceber?
- Não, mas…
- Mas o que acontece consigo acontece com todos os cidadãos. Julga que é mais que os outros, ou quê? Se todos pagam e não bufam… está a perceber? É a igualdade!
- Bom, vou falar com o Bispo.
- Fale com quem quiser. Desde que pague não há problema nenhum. Boa tarde.
20.8.16