DESLUMBRAMENTOS
Há vinte anos, em Kaiserslautern, um velho amigo, número dois do MNE alemão no tempo de Helmut Schmidt, veio ter comigo, sorridente, e disse: parabéns, um português ganhou o Nobel da literatura! Entusiasmado, respondi: o Lobo Antunes? O Peter torceu o nariz,e disse que não era esse, que tão bem conhecia, era um tipo cujo nome não sabia pronunciar, e de que jamais ouvira falar.
Percebi de quem se tratava. Esses alarves do Nobel tinham escolhido um primitivo prolixo em vez de um génio complicado! Eu sei, eram dois candidatos de esquerda, mas um era mais de esquerda que o outro. Eis o critério. Não tinha a ver com a qualidade da escrita ou do pensamento.
Depois de ter lido, com alto sacrifício, o entediante e oco, mas ideologicamente pretencioso, “Memorial do Convento”, ainda insisti e, dada a propaganda, cedi na leitura do “Ensaio sobre a Cegueira”. Despertou-me a curiosidade saber o que queria o homem dizer com aquela chatice. Pensei, pensei, acabando por concluir que se tratava de uma mensagem marxista: os cegos (as pessoas) só se “salvam” quando dirigidas pelas “vanguardas esclarecidas” (a mulher que via), velha e relha teoria da vulgata totalitária. Fiquei informado, e farto. A história do autor era o que se tinha ficado a saber nos idos de 75, com muito molho: saneamentos políticos, artigos soviéticos, pancadaria na mulher e na filha, etc . Tal história não podia ser mais ordinária, o que, confesso, me causava e causa algum parti pris.
Vem isto a propósito da actual gritaria sobre a defunta celebridade. Galardoado com todas as distinções da República, premiado com a concessão de um imóvel de grande significado para Lisboa e para o país e com uma fundação largamente financiada com dinheiros públicos, além de com uma praça histórica onde impera requintado memorial, parece só faltar a Saramago uma reserva num camarote de primeira no panteão de Santa Engrácia.
Aceito que o Sousa Lara meteu a pata na poça quando impediu que um livro dele fosse candidato a um prémio qualquer. E meteu-a, não por não o candidatar mas pelos argumentos usados, altamente ofensivos para o nacional-esquerdismo, em vez de, simplesmente, com razão ou sem ela, ter posto em causa a valia literária da obra.
Através do senhor de Belém, Sousa Lara recebeu ontem a republicana descompostura. Que passe. O que não passa é a extrapolação que por aí se faz: a culpa não foi dele, foi do PM Cavaco Silva. As mesmas pessoas (por exemplo uma tal Lopes, no “Público”) que não atribuem ao intocável Costa as asneiras, as indignidades, as faltas, as falácias, as mentiras, as trapalhadas dos ministros da geringonça, gritam que a “culpa” do Lara foi do Cavaco. Vivemos nisto. As responsabilidades que, gratuitamente ou não, se assacam a uns, deixam de o ser quando de outros se trata.
Só mais uma palavrinha sobre este triste assunto. A que é devida à viúva do ido, senhora que se pavoneia como uma rainha por essa Lisboa fora e pelo país dentro, a quem a República confere sustento, fama e honrarias, mas que, passadas décadas na companhia de um português e outras tantas por cá sem ele, ainda não se deu ao trabalho de aprender a lígua de Camões e, já agora, do companheiro. Uma bofetada quase quotidiana na nossa cara. Um bom exemplo da indignidade dos portugueses que se deslumbram com esta gente.
9.10.18