GENTILEZAS
Declarações prévias:
- O IRRITADO acha muito bem que, a haver corrupção nesta história dos vistos dourados, os respectivos protagonistas sejam sujeitos aos rigores da lei.
- O IRRITADO acha que a corrupção, sobretudo a de “alto nível” ofende os interesses do país e o desprestigia.
Posto isto, olhemo-nos um bocadinho ao espelho.
Quantos, de entre nós, nunca deram uma gorgeta “propiciatória”? Quantos, de entre nós, jamais se viram obrigados a dar umas massas a um tipo para resolver um problema burocrático que, de outra forma, não se resolveria, por mais legítimo que fosse? Quantos nunca “pediram” ao contínuo (hoje “técnico operacional auxiliar” ou coisa que o valha) para ir buscar um papel ao 4º andar e trazê-lo para o 3º, ciente de que, de outra forma, o papel ficaria lá em cima até vir a mulher da fava rica? Quantos “pediram” ao funcionário das finanças para atrasar uma liquidação? Quantos “conseguiram”, com alguma rapidez, um resgisto que, de outra forma, nem no século XXII? Quantos, quando os notários eram públicos, não precisaram de ter relações especiais com ajudantes e mangas de alpaca de toda a espécie? Quantos não pediram à prima funcionária que despachasse ou resolvesse um assunto qualquer?
Falemos claro. Esta coisas de “serviços empurrados” é prática que faz o seu rumo de alto a baixo na nossa sociedade. Quase sempre, direi, para fins legítimos. Não se trata, na esmagadora maioria dos casos, de pagar crimes ou exigir ilegalidades mas, simplesmente, de conseguir, melhor ou mais depressa, a satisfação de necessidades que, como toda a gente sabe, por mais simples que sejam são entravados por uma burocracia avassaladora e anquilosante. Excessos de regulamentos, decretos e despachos? Com certeza. Mas os regulamentos, os despachos, os decretos, são utilizados para isso mesmo: servir de desculpa para o “zeloso” exercício do chamado “poder de função”, fundado em interpretações maximalistas, as quais, para passar a minimalistas, quantas vezes precisam de adequada lubrificação.
Vivemos nisto, sempre vivemos nisto, e venha o mais pintado ter moral para atirar a primeira pedra.
Como se acaba com isto? O IRRITADO, ao longo da sua prègação, tem sugerido algumas pistas. Por exemplo, deitar fora dois terços dos regulamentos que fabricam o “complicadex” em que vivemos.
Porque será que isto não é feito? Desde o 25 de Abril já houve para aí uns trinta ministros e secretários de Estado, oitenta comissões, duzentos grupos de trabalho, sei lá, encarregados da “reforma administrativa”. E se essa gente tivesse actuado como devia? Eu digo: se essa gente tivesse actuado como devia, quantas (mais) dezenas de milhar de funcionários não estariam no desemprego, na “mobilidade” ou em qualquer coisa do género?
Algumas coisas têm sido feitas. Por exemplo: o “simplex”, que funcionou pouco e já está mais que esquecido. Por exemplo, os deferimentos tácitos, que os haveria aos pontapés se as autarquias cumprissem a lei. Mas nunca cumpriram, ou seja, “interpretaram” os deferimentos à sua maneira – à maneira do funcionalismo que ficou aflito por ficar de fora da tramóia. Assim, jamais uma câmara passou uma licença de obra ou de outra coisa qualquer por deferimento tácito, tudo voltando à estaca zero.
Neste ambiente administrativo, como é possível acabar com as “ajudas”? As “ajudas”, seja sob que forma for, das mais inocentes às mais exigentes, são, em muitíssimos casos, indispensáveis, sob pena de paralizia ou de anos a rumar a um incontável número de repartições, autoridades, entidades, fiscais e outros que tais, rodas da máquina da tirania.
Depois, venham cá falar de corrupção.
Repito, provada a culpa dos tipos dos vistos dourados, que sejam castigados nos termos da Lei. Mas têm uma atenuante: mais não são que rodas da máquina infernal que vive de “gentilezas”.
20.11.14
António Borges de Carvalho