NAÇÃO VALENTE
Este verso de “A Portuguesa” é usado pela Iniciativa Liberal (liberal na economia, radical na sociedade, a fazer inveja aos tarados do Bloco), julga-se que para animar a malta. É a filosofia do senhor de Belém a frutificar – somos os maiores, os mais bonitos, os mais inteligentes, bla, bla, bla.
Valente?, pergunta o IRRITADO. Valente? À rasca, é o que é. O pânico é generalizado, anda tudo a tremer de medo. Chamar-lhe valentia é como dizer que a terra é cúbica. Podiam dizer “Nação consciente”, ou outra patetice do género, mas “valente”, pior que wishful thinking, é pura fantasia.
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Um tipo pagou-me uma dívida com um cheque, meio de pagamento a cair em desuso, como é sabido. Quis depositá-lo. A minha agência está fechada. A máquina do multibanco deixou de receber cheques. E agora? Telefono ao “gestor”, o tipo diz-me que há uma agência aberta a cerca de um quilómetro: vá lá, mas tenha calma, não se excite. Lá vou eu. Era meio dia e pouco. Chego à tal agência, estava fechada, só depois da uma, que o pessoal almoça do meio dia à uma. Pensei que devia haver um só funcionário, coitado, tinha de comer. Vim a verificar que havia dois, não percebi porque não podia um almoçar do meio dia à uma e outro da uma às duas, por exemplo. Enfim, um pormenor. Apesar do aviso do “gestor”, comecei a ficar nervoso. Dei umas voltas ao quarteirão, para fazer tempo. Exactamente à uma, estava à porta da agência. Porta fechada, luzes apagadas, uma tristeza. Toquei à campainha. Nada aconteceu. Com o nervoso miudinho a crescer, toquei mais umas vezes. Até que ouvi uma vozinha que parecia vir das profundezas do inferno, dizer: o que deseja? Isto está aberto, perguntei? Sim, o que deseja? Desejo entrar. Sim mas para quê? Para entrar, sou cliente deste banco, o banco está aberto, abram a porta. Mas para que é que quer entrar? Para tratar de um assunto. Ao fim de mais uns episódios deste interessante diálogo, acabei por convencer o indivíduo a abrir-me a porta. Cheio de fé, cheque em riste, aproximei-me da gaiola de vidro onde o tipo, ao ver-me, colocou a mascarilha. Enfiei então o cheque na ranhura disponível. O animal perguntou-me: para que é o cheque? Sendo de outro banco, é lógico que só posso querer depositá-lo, não é para limpar o rabo. Foi o que disse. O homem ficou ofendido, julgo que no seu impecável profissionalismo. Eu já estava eléctrico. Receba o cheque, dê-me o comprovativo, e deixe-se de merdas. Nisto, surge das profundezas da loja outro fulano (como vêem, havia dois, mas almoçavam à mesma hora, que isso de comer sozinho é uma chatice). Ameaçador, em demonstração da mais justa indignação, desatou a dar-me uma lição: então “você”, que anda na confinação, não reconhece que nós, dedicados servidores do público, arriscamos a vida para lhe prestar serviços? “Nós” eram os dois mânfios de serviço, com menos de quarenta anos. Uns valentes (como a Nação!), uns sacrificados, uns heróis da solidariedade, maravilhosos cidadãos a que todos devemos o supremo sacrifício de depositar um cheque.
Pus-me a andar, antes que dedicasse aos dois idiotas o chorrilho de palavrões que mereciam. Corajosos? Valentes? Heróis? Uma ova, dois maricas borrados de medo, a julgar que são gente.
Deve ser a este tipo de malta que a IL atribui a valentia da Nação.
15.4.20