O FIM DOS PRINCÍPIOS
Nos tempos de II República, era comum os rapazes da PIDE aparecerem nos correios a fim de abrir umas cartas a ver se havia notícias do PC, do reviralho, ou alguma propaganda de forças adversas ao poder constituído. Veio a III República, acabou a PIDE e, depois de postos na rua os “radicais” do MFA, lá se conseguiu que alguns princípios fundamentais, como o sigilo da correspondência, passassem a ser respeitados.
A coisa durou uns anos. Com o avançar das tecnologias de informação, começou a haver largas possibilidades de intrusão na vida de cada um. As pessoas e os governos, a UE e a ONU, passaram apreocupar-se com o assunto. Os governos nomeiam comissões, grupos de trabalho, especialistas, o diabo a quatro, a fim de proteger a “privacidade”. Tudo mais ou menos inútil para tal efeito, mas muito bem vindo para a propaganda.
Por outro lado, as pessoas que se queixam são as mesmas que põem nas redes as suas façanhas, se foram à praia, se o menino teve o primeiro dente, se gostam disto ou detestam aquilo. As figuras, figuronas e figurões que se acham famosos, e gostam, propagandeiam os sucessos e insucessos, sobretudo os sexuais, da sua vida. Não se percebe.
A privacidade morreu. Quem quiser saber o que escrevi em privado, o que comprei, onde fui, a quem telefonei e mais o que quiser, basta saber mexer em computadores ou contratar alguém para entrar e bufar. Não será a restauração da PIDE, mas é parecido. Com uma diferença. A PIDE era “selectiva”, isto é, violava a vidinha dos que classificava como “maus” e deixava os outros em relativa paz. Agora, viola-se a vida de toda a gente, sem precisar de ser polícia ou de pedir autorização seja a quem for.
A coisa penetra, triunfante, por toda a parte. E, se o princípio do sigilo da correspondência é letra morta, se a condenação da bufaria passou a ser selectiva como no tempo da PIDE, não é menos verdade que entraram em crise outras regras fundamentais do Estado de direito, como a que postulava que os fins não justificam os meios e a que reservava a investigação da vida das pessoas às autoridades judiciais e policiais. Não faltam apóstolos a defender o seu fim e a incensar os ladrões, segundo a “qualidade” do que roubaram. O roubo ainda não é admitido como prova, mas já faltou mais para que o seja. Os acusadores prosperam, alimentados por media sequiosos de vender.
Enfim, não faltará quem diga que estou a defender a corrupção e os corruptos, em vez de elogiar “jornalistas de investigação”, os hakers e os acusadores televisivos mascarados de comentadores. Sou uma carta fora do baralho da “modernidade”. Paciência.
30.1.20