SAUDADES DA UNIÃO SOVIÉTICA
Nos idos da perestroika - andava o tovarich Gorbacthev a braços com o evidente colapso da economia planificada - o IRRITADO passou uma semana em Moscovo.
Pasmado, assistiu à abertura do primeiro MacDonalds da URSS. Numa enorme praça apinhava-se uma monumental bicha de gente, em espiral – uns trinta de largura -, esperando pacientemente a enorme felicidade de comer um gorduroso hamburger. Um espectáculo verdadeiramente espantoso para um ocidental a quem, apesar de viver num país cheio de problemas, jamais seria dado pensar na simples possibilidade de estar dez horas ou mais (houve quem fizesse as contas) à espera de tal coisa.
Mas não era tudo. Por exemplo, lá no hotel onde, miseravelmente, o IRRITADO comia – quase não havia restaurantes – o camarada de serviço, a quem tratávamos por Jerónimo, além de servir à mesa, trabalhava em câmbios. Quem quisesse rublos metia uma nota de dez dólares dentro do guardanapo, chamava o Jerónimo, dizia-lhe que queria outro e, minutos depois, ele trazia um guardanapo lavadinho, dentro do qual vinha uma quantidade enorme dos ditos rublos.
Os taxistas que, sem excepção, vendiam caviar a 5 dólares a lata, levavam, por tabela, cinco rublos por uma corrida. Outros pediam cinco dólares, o que sugnificava que a tal corrida tanto podia custar 5 dólares como 5 cêntimos, ou menos.
O IRERITADO quis ir ao Bolchoi. Não havia bilhetes. Com uma nota de cinco dólares (seria a tabela geral?) instalou-se confortavelmente num camarote onde, sózinho, assistiu ao Evgueni. Porreiro pá.
No dia em que vínhamos embora, um amigo, de idade avançada, foi objecto de uma paradigmática cena. Depois de fazer as malas, chamou a mulherzinha das limpezas e deu lhe o molho de rublos que ainda tinha no bolso e que já não lhe serviam para nada. A funcionária, agradecida, fechou a porta do quarto e começou, sorridente, a despir-se.
Para telefonar para casa impunha-se ir à recepção do hotel e marcar uma chamada. A menina dizia que amanhã, pelas 19 horas, a tal chamada iria directamente parar ao quarto do requerente. No dia seguinte, à hora aprazada, o citado estava, ansioso, metido no quarto. Às 20, desesperado, voltava à recepção, a fim de protestar. Ao que a menina de serviço respondia que a chamada tinha sido pedida pela sua colega da véspra, pelo que não sabia de nada. Nos dias seguintes, a mesma coisa: a menina marcava a chamada para uma hora em que já lá não estivesse, ou coisa assim. Ao quinto dia, através de um “amigo”, presume-se que do KGB, o IRRITADO lá conseguiu falar com a família. Foi então informado sobre a situação das meninas da recepção: cada uma trabalhava 24 horas seguidas, uma vez por semana. Estavam todas “empregadas”, 7 para um posto, ou dois, ou três, de trabalho. Nenhuma era responsável pelo que, na véspera, a colega tinha feito. Normal. Era o pleno emprego versão soviética.
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A que propósito, perguntar-se-á, vem o IRRITADO, em 2015, chatear as pessoas com estas memórias?
Explicação: é por causa do Syrisa.
O camarada Vrofokakis, ou lá o que é, resolveu readmitir todos os funcionários públicos que tinham sido dispensados. Óptimo para os funcionários, quer fossem precisos quer não. Pleno emprego! Depois, ou antes, o mesmo Croposapoulos, ou lá o que é, decidiu readmitir 600 tarefeiras da limpeza que tinham sido corridas do ministério. Porreiro pá, pelo menos para as senhoras em causa. Ao mesmo tempo, despedia um número indeterminado de técnicos. Porreiro pá, para a propaganda do Syrisa, nada porreiro pá para os técnicos.
Estas corajosas medidas merecem algum esforço de “análise”. Se as mulheres da limpeza são necessárias, imagine-se o estado de imundície em que o ministério se encontrava, há meses sem ter quem o limpasse. Mas, e se o ministério não estava porco? Então para que se readmite as mulheres da limpeza? Pleno emprego, meus amigos, quer dizer, emprego soviético. E os técnicos? Ou eram precisos e foram mal corridos, como as mulheres da limpeza na hipótese um, ou não eram precisos e não se compreende: se as mulheres da limpeza, na hipótese dois, foram readmitidas sem ser precisas, porque raio hão-de os técnicos não precisos ser corridos? Há pleno emprego soviético para umas e não há pleno emprego soviético para outros?
A explicação é simples. As senhoras da limpeza são trabalhadoras e, em princípio, de esquerda; os técnicos são burgueses e, se calhar, são do centro (da direita não, que é sócia).
Não é só o pelo emprego soviético, é também justiça do mesmo nome. A Martins, o Tavares, o Pacheco, a Draga, o Jerónimo e o Costa aplaudem freneticamente.
30.1.15
António Borges de Carvalho