TRATAR BEM OS VELHINHOS
Os gerontes, tidos por preciosos pelo Estado, são objecto de várias tiradas públicas que propagandeiam o respeito por uma vida de trabalho, a consideração pela sua inatacácel dignidade, a obrigação de os acarinhar, proteger, suprir as limitações que a idade provoca, etc. e tal, patati patatá.
Há já vários anos que parece haver uma lei que confere aos maiores de 65 anos prioridade em matéria de atendimento em serviços públicos. Mentira.
Experimente, por exemplo, as finanças da Fontes Pereira de Melo, onde começa por não haver senhas prioritárias. Vá, directo, ao funcionário que trata do assunto que lá o leva, diga a idade, pedindo prioridade. Resposta: Há trezentas pessoas à espera, dezenas delas de idade. Se conseguir demonstrar que é o mais velho dos presentes, dar-lhe-ei prioridade.
Experimente. Eu já o fiz.
Experimente a loja do cidadão, onde há senha prioritária, por exemplo, nos serviços de identificação. Como há só dois tipos a tratar de tais assuntos e há oitocentas grávidas e trezentas criancinhas na bicha do CC, a própria funcionária das senhas diz: Tire uma prioritária e uma normal. Vai ver que a sua vez chega primeiro na normal. E olhe que, pelas minhas contas, pode ir almoçar a casa na calma e voltar mais tarde. Pelo andar da carruagem, não sei se o dia lhe chegará.
Experimente. Eu já o fiz.
Passe para a privada. Exemplo: a Via Verde, que tem senhas prioritárias. Tire uma. Chamam-no depressa. Todo contente, senta-se em frente do cornaca, que o olha com ar desconfiado. O que é isto de senha prioritária? V. responde: Tenho 75 anos, quer ver o cartão do cidadão? Resposta: A idade não interessa, tem que ter deficiência, e acrecenta uma série de condições de tipo moralista-pedagógico-ordinário. V. pede o Livro de Reclamações. Olham uns para os outros como quem diz este gajo, além de velho, é parvo. Passado tempo, lá vem o livro. V. escreve o que tem a escrever, sabe que não servirá para nada, mas, no momento, descarrega a bilis. Surpreendentemente, a Via Verde manda-lhe uma carta (a ASAE deve ter mais que fazer), em que explica: a) que as empresas privadas não têm nada a ver com o assunto, mas que, possuída de generosidade privada, a Via Verde estará disposta a considerar o assunto desde que V. seja homem para conjugar a idade com alguns sinais de de limitações físicas, auditivas, visuais, mentais ou múltiplas, mobilidade reduzida ou outros sinais físicos que evidenciem incapacidade para suportar a penosidade associada à espera. Simples, não é?
Experimente. Eujá o fiz. Há-de vir o dia em que a Via Verde terá, à porta, um conjunto de especialistas, entre os quais médicos de várias especialidades - psicólogos, psiquiatras, otorrinos, ortopedistas, etc., a fim de atestar a sua “penosidade”. Passado o atestado, poderá então usufruir da generosidade corporativa da organização.
Estou a brincar? Não. Os tempos vieram dar-me razão, como a seguir se verá.
No fim do ano, com colaboração da imprensa, foi a geronto-comunidade informada que isso da prioridade, a partir de 1 de Janeiro, seria para respeitar no público e no privado, sob pena de pesadíssima multa, que poderia chegar aos mil euros, a favor do Estado, como é evidente.
Cheio de esperança, Janeiro chegado, aí fui eu a um serviço público (não o citarei por medo de alguma represália), onde tirei a famosa senha. Atendido num ápice, levei uma descompostura dos diabos: Meu caro senhor, isto é um abuso. Poderei fazer o favor de o atender, mas fique sabendo que isso da idade não vale um caracol. Segundo a lei, terá que ter um atestado, devidamente autenticado, passado pelo subdelegado de saúde da sua área de residência, referindo as suas incapacidades para a “penosidade”. Titubeei umas desculpas parvas e, rabinho entre as pernas, fui à vida.
Experimente e verá. Eu já o fiz.
É penoso tentar comentar estas coisas. São sinal da sociedade em que vivemos. Melhor seria não haver “privilégios” nenhuns do que envolver (pseudo)generosas intenções em burocracias, complicar em vez de simplificar, sujeitar cada um ao poder totalitário dos funcionários, transformar o evidente numa questão de papéis e/ou de apreciações doutas e irrecorríveis de quem não sombra da competência para tal, transfomar uma proclamada “justa vantagem” numa fonte de chatices, de perdas de tempo, de nervos e de vergonhas.
Repare-se que, desta vez, ainda não disse mal do chamado governo. É que o mal é endémico. Pensando melhor, não há dúvida que esta última (a da necessidade do atestado) é da cabeça privilegiada de algum geringonço...
6.1.17