VIAGEM À ANATÓLIA
Em tempos idos e ao longo de vários anos fui muitas vezes à Turquia. Por lá conheci muita gente e até fiz meia dúzia de amigos, julgo que já todos a fazer tijolo. Era gente ocidentalizada q.b. , ataturquistas de gema, em geral laicos, adeptos da democracia de que gozavam mas cientes da sua fraqueza congénita, eivada de patriótico sultanismo, isto é, com evidentes pulsões nacionalistas.
Isto fazia deles adeptos dos equilíbrios que a revolução de Mustafa Kemal tinha criado, e imposto, para defesa da nova república. Não, não se tratava de cheks and balances, com nos EUA, nem da tradicional separação de poderes que, pelo menos teoricamente, evita, na Europa, a emergência de tendências autocráticas, de exageros religiosos ou de populismos autoritários. Na Turquia kemalista, tal equilíbrio era assegurado pelas forças armadas, a quem o “pai de Turquia”, ciente dos perigos, tinha confiado a continuidade de um regime do tipo europeu.
O sistema funcionou e, goste-se ou não, perante ameaças ditatoriais foi sempre o exército a criar situações intermédias tendentes a repor o sistema ameaçado. Isto suscitava o horror ocidental, mas tinha o benéfico efeito de, passada tempestade, os “golpistas” cumprirem a sua missão de restauro das liberdades públicas.
Havia, no entanto, uma generalizada pressão nacionalista, um exagero de orgulho nacional, uma inconfessa saudade imperial, um sentimento de frustração perante o regresso às fronteiras tradicionais, presente até no espírito dos mais afectos à democracia e ao modelo europeu. As tergiversações da CEE e da UE em relação à integração da Turquia serviam de mote ao recrudescimento deste tipo de sentimentos.
Neste caldo de cultura vicejou um partido religioso, hesitante entre a charia e o constitucionalismo. Quando, pela primeira vez, tal partido ganhou uma eleição (município de Istambul), as forças armadas fizeram valer a proibição, estabelecida por Kemal, do acesso ao poder por organizações de inspiração religiosa. Mas a “marcha” prosseguiu, sempre com multidões de apoiantes. As “primaveras” árabes, a instabilidade regional, a questão curda, potenciaram o apoio a Erdogan e ao seu partido, a ponto de as forças armadas, desta feita enredadas em contradições, não terem sido capazes, ou não terem sentido apoio popular bastante para cortar cerce o poder emergente. A república laica ficou em causa, começaram as purgas, no exército, nos tribunais, nos media, na sociedade em geral.
O processo não parou mais, o poder pessoal do autocrata eleito reforçou-se a cada dia, culminando, primeiro, num golpe de Estado falhado – há quem diga que preparado pelo próprio Erdogan para justificar a “limpeza” de muitos milhares de militares, políticos, jornalistas, cujo destino, depois das primeiras semanas, deixou de ser conhecido – e, depois, a a atingir o auge com o referendo “bem trabalhado” que ontem alicerçou o poder ditatorial do caudilho.
Internamente, sabemos o que vai acontecer: o parlamento passará a fantoche, os tribunais ficarão ao serviço do poder, as iniciativas da sociedade civil terão a polícia pela frente por mais pacíficas que sejam, a informção passará a caixa de ressonância do poder sob pena de dissolução, sem que se veja, a curto ou médio prazo, qualquer hipótese de alternativa.
Externamente, uma perigosíssima confusão está estabelecida. Ninguém sabe com um mínimo de precisão o que fará a ditadura turca, que fidelidades manterá, quais os “amigos” que criará ou saneará, que papel, se é que algum não de mera oportunidade, desempenhará no teatro da região e do mundo.
Mais uma incerteza, a juntar a tantas que por aí andam a merecer a nossa inquietação.
17.4.17